Nave mãe

Tiago_Silva_VB_12_maio_15

 

(crônica publicada no site Vida Breve)

Escrevo esta crônica ora nas manhãs de sábado, quando o descompromisso com o cotidiano ordinário traz o lampejo tão aguardado, ora numa hora qualquer dos domingos, quase sempre entre os afazeres regados pela certeza inexpugnável de que a semana já acabou e, eterno retorno, vai nos sisifando com as nossas pedras para o topo da montanha. Esta aqui foi escrita nos intercursos de mais um dia das mães.

Durante muito tempo, em especial na infância, a presença da mãe é algo fundamentalmente protetor – hoje acho que é formativo, dado que muitas funções tradicionalmente masculinas também estão sendo exercidas pela mulher –, e me parece que, pelo menos para elas, parte desse instinto permanece durante a vida inteira. Mas também, quando se cresce, estar com elas significa quase sempre dialogar com o que há de mais essencial nas nossas origens.

(E não posso deixar de me lembrar daquela frase do Woody Allen, que é mais ou menos assim porque estou catando de orelhada: “Descobri que meu problema é esse desejo de retornar ao útero, qualquer útero.” Que nietzschiano esse judeu!)

Mas antes do parágrafo digressivo picaresco, dizia que o retorno às nossas origens é tão importante que não consigo pensar a vida sem a referência, real ou imaginada, de um tipo de nave mãe de onde todos brotaram se seguiram suas trajetórias, construindo ou desbravando o próprio universo.

Comemos peixe hoje. Meu irmão, um ano mais velho, gosta muito, e eu também estou longe de recusar. Imediatamente, entre uma garfada e outra, voltamos para as pescarias com o pai, que já embarcou para o oceano infinito. As últimas, nós já adultos, eram em traineiras alugadas, pela costa, na baía de Sepetiba ou em alto mar. Mas as primeiras foram no rio Guandu, cujas margens frequentamos até os meus dez anos. Saíamos para pescar e minha mãe aguardava em casa para, resoluta e apaixonada, limpar os peixes, que nem naquele poema da Adélia Prado.

Falar em poesia, abro sem muito compromisso – que é o melhor jeito de ler – um livro do Manoel de Barros, o da Terceira Infância: “Minha mãe me deu um rio.”

Certa vez assisti a uma palestra no trabalho, daquelas de motivação profissional, codinome de autoajuda. (As empresas ainda não se deram conta de que funcionários não se motivam ouvindo papagaiadas, especialmente quando descobrem que o cachê recebido pelo palestrante por uma hora de conversa fiada é maior que o salário médio da corporação.) Entre as inúmeras obviedades que o pensador corporativo disse, só uma teve valor. Dizia que, diante de uma dúvida, convém pensar se a decisão deixaria a mãe orgulhosa. Talvez fosse uma saída se o superego de políticos e outros poderosos soasse o alerta: “Se você fizer isso vou contar pra tua mãe!”

Não é assim que rola. Por isso o cuidado, o critério nas escolhas e a orientação para o certo vão se perdendo na certeza dos adultos. O indivíduo pronto e acabado, coroado de certezas, corre o sério risco de se tornar algo muito distante do que a mãe esperava. Talvez, mesmo que se torne uma pessoa bem-sucedida financeiramente ou em outro aspecto, em algum momento da vida vai parar e se dar conta: eu falhei.

A sabedoria popular diz que coração de mãe não se engana. Por isso hoje eu e meu irmão retornamos à nave mãe. Precisamos sempre cuidar para que o rio que ela nos deu seja piscoso, porque toda mãe é o milagre da multiplicação. E sobretudo para que, ao cruzar com outros e produzir novas correntes, nossos rios sejam de águas claras, limpas e navegáveis.

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Assunto crônica

Velocidade de dobra

Tiago_Silva_VB_05_maio_15

 

(Crônica publicada no site Vida Breve)

Como a leitora está cansada de saber, a vida tem sido corrida pacas.

E por isso mesmo é que ganham mais relevo aquelas ocasiões que desafiam essa locomotiva do cotidiano, como se fossem alertas que o próprio tempo faz questão de nos lembrar. Tem aquele livro do filósofo francês Gaston Bachelard, chamado a “A intuição do instante”, segundo o qual a percepção cronológica se dá pelo que percebemos dos momentos significativos, como se o tempo em si (chamado de duração) fosse um tapete longo e abstrato sobre o qual conferimos sentido pelas singularidades descontínuas.

E nisso palavras e ideias seguem umas sobre as outras, em desdobramentos.

Um deles foi o lançamento do livro de crônicas “Na dobra do dia”, do meu amigo e colega aqui de Vida Breve Marcelo Moutinho. No meio das pinceladas líricas sobre o cotidiano, estão ali registros de instantes, fotografias (instantâneos) que o olhar e a cuca teimam em capturar. E a dobra do dia, como diz a primeira crônica, é justamente esse momento em que não é dia nem noite, nem manhã nem tarde: é quando nossa percepção do tempo vira uma esquina.

E não serão todos os livros uma forma de se capturar esse outro tempo num invólucro? Há muito que ouço a frase que baliza campanhas de incentivo à leitura: ler é uma viagem. No entanto, mais que o transporte num outro espaço, qualquer livro abre um tipo de portal do tempo. E não digo somente uma viagem para o tempo de uma narrativa, recortado pelo autor para comportar uma história, pois se trata de um dos recursos técnicos básicos para escrever prosa. Mesmo a crônica, etimologicamente ligada ao datado, pode se aproximar do mesmo tipo de transporte provocado por um cheiro que se sentia na infância, por exemplo. Penso que o próprio correr de olhos numa sequência de palavras nos suspende dos compromissos assumidos com a nossa cronologia para dentro desse outro tempo.

O tempo da leitura é uma autopermissão de transcendência.

Li nesta semana que físicos estão realizando testes, e parece que a viagem em velocidade próxima à da luz deve se tornar possível em breve. A velocidade de dobra, para quem não faz parte do universo de Star Trek, consiste no entendimento do espaço como um plano que pode ser deformado, fazendo com que o que está à frente se comprima e que já passou se expanda, criando um tipo de onda. E como espaço e tempo são a mesma coisa, um motor de dobra permitiria que a nave, envolvida numa bolha, surfasse até mais rápido que a luz.

Que viagem.

Acho que, mesmo tropeçando aqui e ali, a evolução humana caminha rumo aos sonhos da espécie. Não duvido que, em algumas décadas, uma nave como a USS Enterprise seja realmente construída, com todas as suas propriedades e capacidades técnicas. Tablets, celulares e outros aparelhos foram desenvolvidos sob a inspiração da ficção científica. E, pegando de paráfrase o poema “O homem, as viagens”, do Drummond, acho que em vez de encontrar vulcanos e klingons, talvez seja possível que a raça humana descubra um pouco mais a si mesma, nesse incrível negódi conviver.

O filósofo francês Gilles Deleuze (peço perdão por citar dois filósofos franceses numa mesma crônica, assumindo o risco de tornar o texto besta) desenvolveu uma teoria tão complicada quando importante sobre a dobra, que em muitos momentos faz contato com a possibilidade da viagem. Diz ele que “o universo é como que comprimido por uma força ativa que dá à matéria um movimento curvilíneo e de turbilhão, segundo uma curva sem tangente no limite”. Mas convém dizer que ele está se referindo ao Barroco, não às aventuras do capitão Kirk e sua galera.

E por fim, volto à grandeza da poesia, na sua capacidade clara de desenhar o tempo. Por isso, termino a primeira crônica deste mês com trecho do poema intitulado “Maio”, da jovem camarada Alice Sant’Anna: “mas maio se mantém meio / bambo na corda, se espirra / cambaleia, em maio dá vontade / de dormir até mais tarde.”

Está no livro chamado “Dobradura”.

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Assunto crônica

Jovens leitores por um autor seminovo – parte 3

Tiago_Silva_VB_28_abril_15

(crônica publicada no site Vida Breve)

Depois de bons dias de treino, o futebol no computador rendeu-me um avassalador e surpreendente 3 a 0 sobre o meu garoto, implementando o respeito já estabelecido fora de campo. E como na nossa tabela pessoal estamos empatados, me parece um sinal de que nossa conexão mais importante permanece forte, porque na verdade não se trata de disputa, mas de diálogo.

Meu garoto é o Pedro, tem nove anos, e me lembro de quando mal sabia falar e já explorava todos os recônditos de um celular, provocando em nós, adultos e senhores dos saberes, um estranhamento que era uma mescla de felicidade e medo. Sentimo-nos seguros quando as manifestações de inteligência se dão com uma intensidade gradativa dentro dos nossos parâmetros, por isso é que um garoto dominar uma sintaxe antes da outra faz parecer que algo está fora de controle.

Não esteve. Ele cresceu, está bem na escola, e curte tanto os longos vídeos sobre Minecraft que pululam no Youtube quanto a boa e velha leitura silenciosa. O mais velho, de treze, vai na mesma onda e ainda cai dentro dos livros de fantasia que estão na moda. Na última Bienal do Livro, aceitou sem cerimônia o convite da Adriana Calcanhotto para se sentar na poltrona com ela e falar poesia numa sessão do café literário. Como eu mediava o papo, fiquei bem orgulhoso, especialmente porque foi a primeira vez em que os jovens foram maioria nesse monstruoso evento, cujo público mais novo sempre foi mais composto pelas visitas escolares.

Gosto de levar os moleques para esses compromissos, que para mim são quase sempre trabalho, mas para eles não é. Nos últimos vinte anos, houve uma proliferação de eventos literários de todos os portes em todo o país, permitindo que autores e leitores se aproximassem cada vez mais. Não creio que isso represente uma mudança radical na valorização do livro como um objeto de desejo no país. A educação para a leitura no Brasil, pelo menos em termos massivos, nunca me parece ter sido uma prioridade ao longo dos últimos séculos, de maneira que não será da noite para o dia que veremos pessoas lendo em todos os cantos, como ocorre na Europa. Ao longo das últimas décadas, saltamos do auditivo para o visual, pulando a fase da leitura e da escrita como fontes privilegiadas de conhecimento.

E essa ideia foi tão bem sedimentada que se criou até um preconceito bizarro em relação à leitura: para muita gente, livro era coisa de gente besta.

Embora tenha diminuído, ainda percebo vestígios dessa resistência em várias situações, como se estivesse clandestino num universo ao qual não deveria pertencer. E mesmo caso seja permitido, para evitar invasão em território alheio, é preciso usar o rótulo literário adequado ao estrato social. Certa vez, uma figura relativamente respeitada no meio acadêmico, na sua boa intenção de dar uma dica, me orientou que não deveria escrever sonetos e outras coisas que gostava na época, e sim fazer hip hop e escrever literatura marginal, para representar a minha classe. E mais uma vez tive de ser marginal a isso, só de ruim.

E tome digressão. Mas outra hora escrevo sobre andar à margem. Voltemos à molecada.

Acredito que boa parte da ideia negativa sobre os livros se diluiu por conta dos eventos literários. Nesses anos em que atuo na área, vi autores de gerações anteriores se adequando às feiras e festas, encontrando com naturalidade seus leitores de todas as faixas etárias. Ao mesmo tempo, acompanhei autores mais novos que se recusaram a encarar o público, seja por timidez ou por ser contra a exposição do escritor, que se transformaria numa figura de palco, para quem seria mais importante fazer números equestres para atrair público do que escrever.

Em meio a esses casos, parece que muitos entendem que as atividades de formação de público leitor se somam a um interesse mais amplo, que pode resultar num retrato cultural melhor em algum tempo. Da Bienal do Livro a uma visita escolar para ler e conversar com jovens (pessoalmente, atividade de que mais gosto), o escritor é hoje parte de uma engrenagem que está apenas começando a girar. Ou pelo menos pode fazer parte, caso decida permanecer no seu canto, pois existem várias possibilidades de se trabalhar um livro sem a presença do autor. Os que são parcial ou totalmente reclusos têm seu espaço garantido: J. D. Salinger ou os nossos Dalton Trevisan e Raduan Nassar que o digam – ou não digam.

De todo modo, a engrenagem está girando e o esforço deve ser geral. Cultivar e cativar leitores deve ser uma obrigação não só do autor, mas de editores, professores, bibliotecários e todos os profissionais ligados direta e indiretamente à área. E pelo menos os escritores jovens, de idade ou de espírito, sabem disso bem.

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Assunto crônica

Jovens leitores por um autor seminovo – parte 2

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(crônica publicada no site Vida Breve)

Ao fim da última crônica, fui jogar futebol no computador com meus moleques. Ainda que entrasse em campo com a vantagem do vivido, estufando o peito para dizer que bato bola numa tela desde a época do Atari, quando a pelota era um quadrado, levei uma surra fenomenal. E quando jogamos de verdade, o mais novo, tão ágil quanto magricela, me humilha sem muito esforço, fazendo-me lembrar daquela frase do Quintana, sempre exato: “A experiência é um médico que chega quando o doente já morreu”.

Só me resta praticar e tentar entender a rapidez com que essa molecada lida com o real e o digital. Sou de um tempo – perdão pela expressão esclerótica, eivada de um saudosismo caquético, quando tudo parecia melhor sob o filtro otimista da memória – em que se pensava no real versus o digital (quando ainda se chamava virtual), uma ideia ou tecnologia chegava para substituir a outra, e não se somar. Acreditava-se que a única coisa que ao mesmo tempo era analógica e digital era o exame de próstata.

E assim, a fotografia iria matar a pintura, o cinema atropelaria o teatro, a televisão iria violentar o rádio (o teatro também), o videocassete exterminaria o cinema, e os videogames iriam fazer todo mundo se matar. Volto aos games como um caso interessante porque trabalhei numa videolocadora durante anos, enquanto estudava Letras, e gostava de conversar com os clientes sobre os filmes e os jogos. E o que se vê é que tudo convive e, com alguma sagacidade, se apoia.

E a leitura/literatura com isso? É interessante ter acompanhado a transição de algumas safras, e ver que, para os da chamada geração Z (nascidos de meados dos anos 1990 para cá), o mundo dos livros é tão apetitoso quando os de qualquer outra possibilidade, suporte ou meio de se receber bom conteúdo. E por isso mesmo é que eles se tornaram também grandes produtores de conteúdo, utilizando também todas as formas de divulgar seus trabalhos que estão disponíveis. Não são mais tão raros os casos de autores amplamente lidos, analisados e comentados apenas nas redes sociais, ainda que desconhecidos nos meios oficiais e “sérios” da grande cultura, como se estivessem num mundo paralelo. E quem, afinal de contas, é o paralelo nessa história? Na verdade, ninguém.

Quando surgiram os blogs, nos longínquos anos 00, encabeçamos neles por conta das possiblidades de trocas de leituras e conexões. E meu grande aprendizado foi a relevância de contar com mais um canal para tentar cultivar e cativar leitores, algo que os mais novos já fazem com eficácia.

Nesta semana, recebi uma ligação de uma mulher, cuja filha de quinze anos acabara de escrever um romance e havia recebido uma proposta de uma editora. Conversando no viva voz com as duas e o pai, me pediram dicas de como proceder com contratos, capa, vendas etc. Não sou consultor editorial e espero ter dado conselhos positivos, mesmo porque o mote da história pareceu ser bem legal. Mas o que me deixou espantado foi a naturalidade com que isso tudo se deu. Quando tinha quase essa idade, disse que gostaria de ser escritor após vencer um concurso de frases na escola, e ouvi mais gargalhadas e deboches do que incentivo. Sorte tudo ter mudado e ter surgido uma estrutura que permita o exercício da criatividade.

O que eu disse para a jovem autora é: só escrever e publicar não basta, mesmo que seja só na internet. Se antes as pessoas próximas não nos liam, com a internet é possível sermos ignorados em qualquer lugar do mundo, a qualquer hora. Por isso é que as vantagens da vida digital se somam a visitas em clubes de leitura, escolas e eventos literários. Mas isso fica para a semana que vem, pois é hora da revanche no futebol aqui com os meus moleques.

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Assunto crônica

Jovens leitores por um autor seminovo – parte 1

Tiago_Silva_VB_14_abril_15

(crônica no site Vida Breve)

Ontem participei de um bate-papo numa livraria, coisa que gosto pacas de fazer, agora que sou um ex-tímido. O título era “encontro com jovens escritores”, de maneira que, do alto dos meus 39 anos – seminovo, no estado, lataria com mossas aqui e ali, conquanto motor ainda suficiente para uns bons quilômetros estrada –, ser enquadrado no rol dos jovens me deixa felizmente fora de um hai-kai cruel que se aplica a determinados colegas contemporâneos, os quais sempre vale dar uma trollada: “de tudo o que mais me irrita / é bancar o garotão / e não passar de um tio sukita”. Trollar, negódi nerd.

E já que não me foi outorgada a categoria dos semivelhos, aceitei a convocação de boa.

E o lance descambou para a questão dos jovens leitores. Acho que pensar o jovem é um dos assuntos mais relevantes hoje. Pode não parecer mais uma novidade, mas há poucas décadas o jovem não passava de um meio termo, nem criança nem adulto, situado num entrelugar desajeitado da sociedade. O jovem pobre, então, era um potencial quizumbeiro, cujas atividades só eram amainadas por medidas coercitivas, sendo amontoados em instituições como a Febem. A situação está longe de ser resolvida, mas tenho visto caminhos sendo bem trilhados. O Estatuto da Juventude só foi sancionado recentemente (antes só havia o ECA), e mesmo lugares que antes eram carceragem hoje abrigam importantes projetos voltados exclusivamente para jovens, como o maneiríssimo Plug Minas, em Belo Horizonte, onde cada prédio da Febem se tornou um núcleo de criação de arte e cultura para a garotada. Na minha época (opa) não tinha nada disso.

E se o jovem é o protagonista de tanta coisa – vide o junho/2013 –, no mundo da leitura não é diferente. Há uns anos ninguém poderia prever que a turma mais nova iria ler tanto que se expandiria mais para a frente, criando um filão de mercado chamado jovem adulto, que lota os grandes eventos de livros, onde se veem garotos e garotas carregando pilhas de calhamaços. Fãs, fanáticos por livros. Que maravilha.

Cresci ouvindo a máxima de que jovem não gosta de ler, escrever menos ainda, e fui para o caminho inverso, só de ruim. Depois, quando surgiram os computadores e toda a revolução digital, ouvia especialistas alarmados sobre a morte do livro, o fim da leitura etc. E se a TV sempre foi o inimigo, chegara ainda o comparsa videogame: as crianças que jogavam iriam maquinalmente crescer repetindo as ações dos bonequinhos da tela. E, sinceramente, não vejo ninguém por aí dando cabeçadas em blocos de onde saem moedas e pulando sobre tartarugas, ou mesmo pessoas tomando pílulas num labirinto escuro para depois devorar os fantasmas que antes o perseguiam. Aliás, ao terminar de escrever esta crônica devo jogar uma partida de futebol aqui no PC com a minha molecada: vivo tentando reaprender coisas com eles.

E por falar em reaprender, na rearrumação da biblioteca encontro um volume de crônicas de educação da Cecília Meireles. Lá pelo início da década de 1930, motivada pelo movimento da Escola Nova, a poeta escreveu no Diário de Notícias uns textos que caberiam bem aos nossos dias. Sobre o que leem os adolescentes na sua busca de um mundo distante para se fixar: “Se de súbito lhe dirigirmos a palavra, acordarão perplexas, tontas ainda das paisagens por onde andaram, embevecidas pelos diálogos que ouviram./ Sairão de dentro da sua profunda leitura com um suspiro longo, tão longo, que se sente bem por que distâncias andavam.”

Algo não mudou muito no teor dessas leituras, e a Cecília, como todo bom poeta e demiurgo, nos deixou o recado, de forma crítica e reflexiva. E hoje o próprio jovem busca a sua voz como autor.

Mas sobre isso continuo teclando semana que vem, pois agora é hora do nosso futebol aqui. Fui.

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Assunto crônica

O livro de Abrahão

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(crônica publicada no site Vida Breve)

E peregrinou Abraão na terra dos filisteus muitos dias.
Gênesis 21:34

Todos os dias, voltando do trabalho, sou obrigado a fazer algumas paradas.  Acho o tempo uma moeda forte — ainda que instável —, por isso mudei de emprego, trocando parte do salário por três horas a menos no trânsito. Felizmente, moro a poucos quilômetros da labuta, um privilégio numa cidade que, em termos de engarrafamentos, vem se apaulistando numa velocidade cada vez maior. Ou menor, no caso. Nesse trajeto de sete quilômetros, porém, existem pelo menos três locais de breves afunilamentos intransitáveis.

No último deles, surgem pedintes, acrobatas, panfleteiros e vendedores. Todos os dias têm ocorrido assaltos pelas redondezas, de modo que é quase inevitável para os motoristas a desconfiança de quem se aproxima dos carros. Ano passado, no dia em que o Brasil eliminou o Chile da Copa, fui assaltado a mão armada e me levaram o carango com a bandeirinha verde e amarela e todos os demais pertences. Estava com minha família, e ficamos na estrada apavorados, socorridos por um sujeito que estava no bar, cujo carro acabara de ser levado também, pelo mesmo bando. Daí minha cisma de vidros fechados.

Mesmo assim, não pude deixar de notar no vendedor de pipoca. O garoto tem uns dez anos, e carrega os saquinhos vermelhos muito sem jeito, não oferece a ninguém, como se estivesse cheio de vergonha. Em diversas ocasiões, ele fica apenas sentado no meio fio, cabisbaixo, como se a mente o levasse para longe dali.

Comprei algumas vezes dele para tentar dar uma força (e também porque sempre gostei dessa pipoca doce, confesso), mas outro dia a intenção era mesmo entregar um pacote de livros infantis e juvenis para o garoto. Depois de pagar e receber a pipoca, agradeci e perguntei:

— Você gosta de ler?

— O quê? — me respondeu desconfiado.

— Ler, ler assim — fiz o movimento de mudar páginas.

— Ah, ler livro? Gosto, gosto sim.

E entreguei o pacote contendo um pouco de Roberto Louis Stevenson, Ziraldo, Augusto Pessôa, Ninfa Parreiras, Anna Claudia Ramos, Guto Lins, Gloria Kirinus, um meu e outros tantos. Ele olhou para o conteúdo e para mim várias vezes, e demorou uns segundos também para sair da defensiva, como se eu fosse cobrar algo. Sabe-se lá a desconfiança necessária para ser vendedor de rua, na qual ele também precisa se submeter no dia a dia, mantendo automaticamente os vidros da alma fechados…

Ao final, ele apertou minha mão, me apresentei e ele disse o nome:

— Abraão.

E nos despedimos.

Ontem estranhamente não havia engarrafamento. Mas diminuí a velocidade para acenar para ele:

— Fala, Abraão. Tudo bem, meu camarada?

E ele acenou e depois deu um joinha. Dessa vez sorrindo.

Abraão significa “o pai de muitos” em hebraico. O da Bíblia teve que sacrificar seu então único filho sob a ordem de Deus — o que não chegou a ocorrer, pois Isaque foi substituído por um carneiro na última hora. Essa demonstração de fé (ou obediência) teria feito dele o patriarca do cristianismo, judaísmo e islamismo. Aí sim, pai de muitos.

O Abraão daqui, vendedor de pipocas, é um menino que não devia trabalhar tão cedo, mas é provável que as circunstâncias o obriguem a contribuir em casa, trocando o papel de filho pelo de pai.

Não tenho crença de que os livros vão mudar a vida do nosso Abraão, pelo menos diretamente. Mas espero que esses novos companheiros contribuam para que esse garoto, de alguma forma, consiga ler também o mundo. Que não se engarrafe na vida e, fazendo as escolhas certas, escreva e siga a sua própria estrada.

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Assunto crônica

Das pequenas mudanças

Tiago_Silva_VB_07_abril_15

(crônica publicada no site Vida Breve)

Acabo de me mudar, de modo que peço perdão à leitora pela pressa com que escrevo. Cada teclada desce com um pouco de poeira ainda, no afã das coisas recém-montadas. E cada frase é produzida por um movimento que desce pelos braços doloridos, passando pelas articulações ainda tensionadas até chegar nas mãos esfoladas após a sequência interminável de descarregamentos.

Por isso é que tento rearrumar aqui as peças desmontadas, leva por leva:

  1. Trata-se da minha 19ª mudança ao longo da vida. Parecem muitas mas o que me alegra é saber que foram gradativamente melhorando. Se as primeiras eram fruto amargo dos perrengues, as últimas foram decorrentes de conquistas.
  2. Os caras do frete precisam e buscam trabalho, mas na hora não querem ter trabalho.
  3. Dia de mudança é parecida com doença: só os verdadeiros amigos e parentes aparecem.
  4. Sempre dizemos “eu me mudei”, quando na verdade o que se muda são os utensílios, o endereço para as malas diretas – e, naturalmente, os móveis propriamente ditos. É possível mudar isso tudo e manter-se exatamente o mesmo indivíduo. Da mesma forma, qualquer um pode, sem sequer ter movido uma palha, tomar um choque de alteridade ou mesmo dizer para si mesmo: eu (me) mudei. Clariceano e esquizofrênico, não sei onde guardar isso.
  5. Se eu tivesse uma empresa de fretes ela se chamaria Transportes Heráclito, e o slogan seria Porque o mais importante na vida é a mudança.
  6. Mas também gostaria de criar uma cerveja: Beba Schopenhauer: o que importa é a vontade.
  7. Um indicador imenso de passagem no tempo são as poeiras que se acumulam atrás dos móveis grandes. Ali o chão é diferente, limpo e virgem, como uma lembrança congelada daquele pedaço de chão antes da nossa chegada. Parece a casa nos dizendo: veja só essa beleza que você tirou de mim.
  8. Já as paredes são menos melancólicas, mas se apegam ao que lhes cobre. O espaço de um quadro fica saudosamente marcado, como se fosse um fantasma da imagem que habitava ali.
  9. É preciso doar coisas, jogar fora tantas outras, ver o que não é realmente necessário depois de um tempo acumulando coisas. Mas é como a foto de Itabira, como dói.
  10. Ter uma biblioteca com uns milhares de livros é uma maravilha até se descobrir que só podemos carregar poucos por vez e ela foi montada em sua maioria no quinto andar sem elevador. Cada um dos sessenta degraus torna o valor de cada obra maior ainda. E não, não os trocaria por um prático e-reader, ainda que use a trabalho. Preciso dos volumes de livros ao meu redor me olhando do silêncio precioso das estantes.
  11. E a pausa para colocar em uma “O cachorrinho Samba”, primeiro livro que li e acho que o mais importante. Não tinha luz na casa onde morava e acompanhar as aventuras ao lado da pequena chama de uma vela tornou a história ainda mais fabulosa. Esse elemento atiça a imaginação, creio: vide as tradições orais em torno de fogueiras. Morava ao lado do Guandu, rio gigante que levava tudo. E depois fomos embora, acho que foi a sexta ou sétima mudança.
  12. Cara de cachorro que caiu da mudança. Já disseram que fiquei assim, certa vez.
  13. De tudo o pior é apertar parafusos, atividade que mais me angustia. O inferno é um lugar onde se precisa, por toda a eternidade, apertar e desapertar um mesmo parafuso mal ajambrado, e com a chave errada.
  14. “Todo o mundo é comporto de mudanças / Tomando sempre novas qualidades.” Os decassílabos heroicos do Camões são legais e gerais, mas me lembro de dois versos mais políticos do Affonso Romano: “Amigos, nada mudou / em essência.” Atual pacas.
  15. Eu mudei e me mudei. Estou casado.

 

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Assunto crônica

Storytellying é o cacete!

Tiago_Silva_VB_24_março_15

(crônica publicada no site Vida Breve)

Por esses dias foi comemorado o dia do contador de histórias. (Como as crônicas anteriores se basearam no dia da mulher, dia da poesia e aniversário do Rio de Janeiro, prometo à leitora dar um tempo dessa técnica mui manjada de pescar esta página das terças na efeméride da semana, e assim irei me basear em assuntos mais desimportantes – o que, via de regra, rende melhores textos.)

Mas, como dizia, comemorou-se o dia do contador de histórias. A celebração teve início na Suécia em 1991, primeiro dia da primavera no hemisfério norte, quando se buscou homenagear essa figura importante que existe em todas as culturas. Ignorante, há um tempo pensava que toda efeméride se originava no dia de nascimento ou morte de alguém. Mas uma pesquisa rápida nos informa que nesse dia nasceram o poeta romano Ovídio – tive um professor de latim que vivia repetindo “Ovídio sabia tudo!”, o dramaturgo norueguês, meu semixará, Henrik Ibsen e o poeta paulista Menotti Del Picchia, aquele para quem o crítico Agripino Grieco fez um dos trocadilhos mais redondinhos de que se tem notícia: “Menotti del Picchia, fecha a braguilha do teu nome!”

Aliás, que palavra feia essa tal “efeméride”! Perde apenas para “cônjuge”.

Faço um balão na avenida das digressões e retorno ao assunto: os contadores de histórias. Essa forma de arte é uma das mais relevantes que existem. Ainda que muitos associem a narração oral de histórias a uma prática exclusivamente voltada para o universo infantil, trata-se de uma ação acessível a todas as faixas etárias. Lida com imaginação e memória, dois campos importantes dos nossos processos cognitivos, e uma necessidade que todos temos, talvez inata, de absorver narrativas. Dos mitos contatos em torno de fogueiras crepitantes, passando pelos romances, o cinema e os videogames, parece que precisamos encontrar sempre novas formas de transmitir histórias.

A trabalho, circulei por diversas cidades acompanhando alguns contadores, e as experiências são sempre muito gratificantes. Diferente de uma apresentação teatral, em que a representação é o foco do espetáculo, numa “contação” (parece que o termo não está mais em uso) importante é justamente o texto, a narratividade sugerida pelo contador, cuja performance não pode ser superior ao que é contado. Existem variadas técnicas, com malas, pequenos objetos, tapetes e mesmo livros, mas o principal é a voz narrativa do contador. Por isso muitos têm certo preconceito com essa arte, que é logo quebrado após ouvir uma boa história bem contada.

Em países como a Espanha, o contador de histórias é uma profissão reconhecida. Não por acaso, é a terra de Cervantes, cujos restos mortais foram descobertos há poucos dias. O autor de “D. Quixote” contou a primeira grande história moderna do Ocidente. Naquelas terras, há indivíduos que vivem em itinerâncias apresentando seus cuentos. Nas últimas décadas, essa atividade vem se firmando por aqui também como uma forma de arte autônoma.

E mesmo a publicidade pega carona nessa onda. O termo storytelling é usado quando os caras querem criar uma historinha em torno de determinada marca para que ela pareça mais apetecível ao público consumidor. Há casos, revelados recentemente, em que abusaram desse recurso, inventando histórias mentirosas sobre os seus produtos, como a marca Do bem, cujos sucos viriam de frutas fresquinhas oriundas de uma fazenda de um senhorzinho chamado Francesco. Tudo balela.

O tal storytelling nada tem a ver com a arte de contar histórias. É o extremo oposto. Ninguém sai de uma sessão de narração de histórias querendo comprar coisa alguma – a não ser, quando muito, livros que contem histórias. O que se pretende não é consumir, e sim imaginar, sentir, e experimentar o sabor de uma narrativa. Tudo grátis. Uma propaganda que utiliza esses recursos de forma pouco ética parece, no fundo, distrair a mente do público enquanto mete a mão no bolso dele.

Não estamos na primavera, e sim no outono, a estação em que o Rio de Janeiro fica mais bonito. Boa época para se contar uma história, assim mesmo, em bom português. Como diz o Alcelmo Gois, storytelling é o cacete!

 

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Um dedo de prosa, dois dedos de poesia

Tiago_Silva_VB_17_março_15

(crônica publicada no site Vida Breve)

Hoje, ao teclar estas bem justificadas linhas, é comemorado o dia nacional da poesia. A leitora já deve ter notado que meus textos semanais surgem com certo delay, considerando o intervalo entre o dia em que escrevo e o da publicação. Não há o que fazer. Esse é um sistema comum aos cronistas, que estão sempre presos aos acontecimentos do dia, presos ao hoje, atemporalmente com um pé atrás.

Castro Alves nasceu em Curralinho, no interior da Bahia, em 14 de março de 1847. Mas hoje a cidade tem o nome do poeta, celebrando o ilustre nativo e livrando-a das piadas dignas de sexta série, similares a outras localidades brasileiras como Pau Grande, Não-Me-Toque, Braço do Trombudo, Entrepelado, Pintópolis, Barro Duro e Jardim das Piranhas. Se cada cidade dessas gerasse um poeta da mesma cepa do autor de “Espumas flutuantes”, humor e poesia teriam mais interseções na nossa geografia.

Pulo uma linha e da poesia vou para a prosa, pois hoje é aniversário também de Carlos Heitor Cony, que completa 89 anos e segue produzindo. Pelo que me lembro, foi o primeiro caso de um autor que se empolgou com as facilidades do processador de texto no computador e, depois de um hiato de mais de duas décadas, voltou à ficção e escreveu “Quase memória”, um dos meus romances preferidos. Há uns quinze anos, quando ele veio palestrar na faculdade onde eu estudava, explicou porque prefere Bandeira a Drummond, e a identificação apenas aumentou. Sempre curti mais o recifense também.

Ou melhor, tive outro tipo de aproximação. Creio que a literatura – e a poesia, talvez de forma ainda mais afiada — nos marca pela ocasião em que estamos vivendo quando nos aproximamos dela. Tive uma adolescência regada a Vinicius de Moraes como leitura espontânea, com um objetivo prático que gosto de relatar quando visito escolas: decorava vários poemas dele e escrevia para as garotas fingindo que estava criando na hora, escrevendo sonetos de forma tão rápida que faria inveja a qualquer médium numa sessão de psicografia. Às vezes dava certo, e fiquei muito feliz quando, certa vez, um rapaz me disse por email ter dado meu livro de poemas para a menina com quem começava a namorar. Graças ao Vina.

Ainda que já conhecesse poemas de Drummond, a leitura do mineiro veio depois, já universitária, regada a monografias e perspectivas teóricas que às vezes fecham um pouco o texto, vertendo o olhar para algo profissional. E a leitura de poesia requer uma perspectiva amadora, desarmada. Só fui ter essa experiência de fruição depois, mas já era um pouco tarde para recriar a paixão única da primeira vista.

Por isso desenvolvi uma longa e lenta admiração pela poesia de Drummond, que se tornou um amplo museu ou parque poético, universal em temáticas e técnicas. Mas nesse meio tempo, não me lembro por que motivo, li versos como “todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir”, e Bandeira se hasteou de forma definitiva, ocupando um lugar de preferência que dura até hoje, na intimidade da identificação, no desencanto com o mundo transferido suavemente para estrofes.

Se Drummond foi um parque, Bandeira se tornou um bar. E nele vale a pena ir pelo menos uma vez por semana encontrar a rapaziada. Nesses tempos tão prosaicos, é até uma questão de saúde.

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Colchas de retalhos

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(crônica publicada no site Vida Breve)

 

Para a Bianca e a D. Ana

A leitora que para suas atividades para ler uma crônica num site já é digna de aplauso. Pelo menos do meu. E desde já agradeço, pois esta é para você mesma.

Escrevo esta croniqueta no dia internacional da mulher. Dentre as muitas versões para a origem dessa data comemorativa, a mais conhecida é aquela atribuída ao incêndio numa fábrica de tecidos nos Estados Unidos, no qual quase uma centena e meia de costureiras morreram. Outra versão associa a data à greve das operárias da indústria têxtil russa, e tamanha foi a intensidade do movimento que o resultado foi a Revolução de 1917.

Das duas versões, um ponto me chama a atenção: a mulher que costura.

No filme Colcha de retalhos (de 1995, dirigido por Jocelyn Moorhouse), a personagem vivida por Wynona Ryder vai morar na casa da avó enquanto termina sua tese, dias antes de se casar. As amigas da avó se reúnem para costurar uma colcha de retalhos para dar de presente de casamento. Enquanto as idosas constroem a grande manta, cada uma conta a própria história. O final tem uma cena epifânica muito interessante, mas não vou contar para não ser acusado de soltar spoiler, caso a leitora ainda não tenha assistido a esse filme.

As colchas de retalhos são formadas por um conjunto de pequenos elementos que, sozinhos, não devem ter muita força, mas que unidos formam uma unidade imensa. Toda colcha de retalhos é uma revolução, e vice-versa.

A costura é um símbolo muito forte em muitas tradições ocidentais e orientais. Penélope, mulher do herói Ulisses, aguardava o retorno do marido da guerra de Troia. Ela apenas se casaria novamente quando terminasse de tecer um sudário, e toda noite desfazia tudo o que havia costurado durante o dia, num fio e desfio que durou vinte anos, quando então o marido, por fim, retornou.

Quem não conhece Sherazade, mito persa da mulher condenada à morte e que sobreviveu pela capacidade de cerzir histórias? O Rei Shariar, traído, decidiu se casar todas as noites com uma mulher e no dia seguinte pela manhã iria matá-la, para não ser chifrado novamente.  Mas a astuta Sherazade encantou o rei com narrativas durante mil e uma noites, e ao fim não só ela estava livre da execução, mas também havia livrado o rei de sua amargura e vingança, e ambos se casaram e viveram enquanto dura a eternidade das lendas.

Plural e amplo, o manto das histórias de Sherazade salvou todo o reino.

A minha bisavó utilizava uma daquelas máquinas de costura antigas, com um pedal de ferro pesado. Parecia uma locomotiva que não saía do lugar, enquanto costurava as colchas de retalho que usava em casa e dava de presente. Eram muito confortáveis, resistentes e seguras para tirar um cochilo em cima, uma extensão da minha bisavó.

Essa lembrança, como todas as boas viagens da memória, age como um bumerangue e volta para os nossos dias. Minhas últimas três chefias de trabalho, incluindo a atual, são mulheres – e nem quero falar da presidente. Fui criado apenas pela minha mãe, que aniversariou ontem, e lá estavam minha namorada, primas, tias, sobrinhas, cada uma delas mulher ora de Atenas, ora de Tróia, seja esperando ou defendendo seu pequeno reinado do dia a dia.

E então me dou conta de que eu mesmo sou uma colcha de retalhos, tecido construído pouco a pouco por mãos tão distintas quanto habilidosas.

Que este pequeno texto, alinhavado aqui por um costureiro incerto, sirva para cobrir por uns minutos os olhos da leitora, como quem se deita brevemente procurando a suavidade de um cochilo.

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