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Previsões literárias comentadas para 2017 (parte 1)

 

Tempvs fvdit. A leitora mal acabou de postar a lista dos melhores livros de 2016 e já está fazendo suas projeções para o ano que já está correndo. Enquanto sofria fazendo as contas para saber se pagaria o IPTU de uma vez ou em cotas – considerando que no fim opto pela última -, tive uma crise de pânico. Por engano e na pressa, tomei um laxante em vez de ansiolítico, de maneira que tive um insight (ou seria outside?) no qual consegui ver o futuro do pretérito (todo futuro não é de um pretérito, ó pá?) de tudo o que ocorrerá no nosso pequeno grande universo literário.

Na correria, organizei por meses os principais acontecimentos de 2017. E como tenho meu distanciamento analítico, teci meus próprios comentários acerca de cada item. A margem de erro é de um ou dois superegos.

Janeiro – Divulgadas as listas de livros mais vendidos em 2016. Youtubers lideram. Quando falei que iria abrir um canal minha mãe achou que tinha a ver com dentista e tive ciência da minha anacronia com o mundo.

Fevereiro – Escritora cult com carência de Vitamina D divulga oficina literária de férias, para turma com no máximo 4 alunos: “Odeio Carnaval, praia e gente burra. Só parei as (re)leituras para (re)ver ‘Teorema’, do Pasolini.” Essas turmas geralmente fecham com metade, porque lotar oficina é muito mainstream, coisa do deus-mercado.

Março – Editoras descobrem novos baús e lançam livros inéditos de Tolkien, Fernando Pessoa e Renato Russo. Este último contém um apanhado de receitas de miojo, bilhetes de geladeira e canhotos de ingressos de cinema. Fico imaginando quando aparecerem os livros psicografados, porque esses caras devem estar num tremendo constrangimento além-túmulo de tanto aquém-bom senso.

Abril – Lançadas biografias não autorizada e autorizada de famoso youtuber de 9 anos. Aposto que logo em seguida ele vai fechar o canal e dizer que precisa se reinventar.

Maio – Grande rede de livrarias descobre que literatura brasileira vende quase nada não pelo conteúdo, mas porque os clientes preferem nomes estrangeiros. Editoras estudam assinar contratos apenas com nomes esquisitos, como P. V. Cirilo. Como meu último sobrenome é Pinto (sim, por parte de pai), vou mudar para algo internacional, como H. R. Pinterest, H. Pointclick ou coisa que o valha. Numa dessas podem me confundir com o Harold Pinter, cujos livros teriam sido descobertos num baú etc.

Junho – Divulgada a lista de convidados para a Flip. Mas apenas a de nomes internacionais, pois a brasileira será montada na última hora num tipo de sistema de cotas, considerando que 70% são da mesma grande editora de sempre. Pousadas esperam público menor por conta da crise e aumentam preços para compensar. E como acontece todo ano, vem no release: “essa será a melhor edição do evento”. Tá beleza.

(Não saiam daí, pois continua semana que vem. Mentira, saiam sim, de preferência para onde tenha ar-condicionado de graça!)

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Assunto crônica

Os melhores livros que não li em 2016

 

Agora que passou o período das listas, das retrospectivas, dos balanços, dos já-vai-tardes que se acumulam no final do ano, e aquela sensação de que todas as mazelas acumuladas numa época são resultado de uma conspiração obscura refletida no calendário, é hora de respirar. Dentro de ar-condicionado, de preferência, pelo menos para os que vivem em cidades como este Rio de Janeiro, metrópole na qual se você jogar um ovo para cima ele cai já cozido, estrelado com gema dura – ou para ser mais lírico, já em forma de pintinho.

Ainda não! A leitora deve saber que este cronista está escrevendo ainda em 2016, no último dia do ano, com o peso inexpugnável dos doze meses caindo sobre cada teclada. Desta feita, a ideia de que 2017 será um carrinho de mercado cheio de possibilidades ainda me é estranha, ainda que eu saiba que, desses itens, muitos não passam no caixa. E agora, já carregando as compras, olho para o que pretendi levar mas, por vários motivos, ficaram na cestinha das devoluções.

Embora 2016 tenha sido um ano de grandes bizarrices públicas, perdas imensas e indignação geral, foi também de muito trabalho e pequenas ilhas de vitórias. O cansaço de sucessivas viagens de trabalho ou de atividades literárias – as quais, ainda que muita gente não considere, são também trabalho – tomou boa parte do tempo.

E assim listo os livros mais importantes que me interessaram pacas mas que, por motivos dos mais variados, não li:

A resistência, de Julián Fuks – esse romance arrebatou um monte de prêmios, mas já gostava dessa prosa desde o “Procura do romance”, quando gerenciei a criação dos 60 booktrailers finalistas do Portugal Telecom. Espero não resistir à leitura.

Não, de Bruna Mitrano – essa jovem poeta tem uma carga lírica (ou antilírica, dependendo da perspectiva) bem forte nos poucos textos que li de forma esparsa. Quero vê-los no conjunto, ainda.

Descobri que estava morto, de J. P. Cuenca – o mote do livro é interessante – o autor descobriu um registro do próprio óbito na delegacia – e, pelo que conheço do autor, deve usar e abusar da autoironia.

Enclausurado, de Ian McEwan – li as primeiras páginas na livraria e me interessei muito pelo narrador (um feto ainda na barriga da mãe) e pelo tom. Mas quando comprei já estava numa correria imensa e já pensava que ele seria guardado para as férias.

Meia-noite e vinte, de Daniel Galera – a prosa firme e equilibrada do Galera é garantia de coisa boa, ainda mais com a temática de balanço geracional. Naturalmente, tem a inevitável sombra do romanção anterior, Barba ensopada de sangue, mas vamos ver. Também está na lista das férias.

O sucesso, de Adriana Lisboa – a Adriana é autora de um dos melhores livros que li na vida, o Sinfonia em branco, e tudo dela é acima da média. Um dos contos desse livro (Aquele ano em Rishikesh) havia sido escrito para uma antologia que organizei inspirada nas músicas dos Beatles, mas acabou ficando fora por questões burocráticas.

O tribunal da quinta-feira, de Michel Laub – quando vi que o enredo tratava de uma mulher que descobriu os e-mails trocados entre o ex e um amigo, fiquei logo pensando se tinha referência com um episódio ocorrido na vida editorial paulista há uns anos. Mas de todo modo parece ser um livrão, que saiu quando eu já estava funcionando na luz de emergência.

Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch – O principal nome internacional da Flip me passou batido, pois mais uma vez passei todos os dias do evento correndo insanamente e resolvendo coisas, quase a ponto de chegar ao karoshi, nome dado aos japoneses que se suicidam por excesso de trabalho.

– Os 6 livros da série “The Witcher”, de Andrzej Sapkowski – meu lado geek lamenta eu não ter nem começado a ler esses romances de fantasia que geraram esse grande game – que contém mais drama que a maioria das novelas. Aliás, como as narrativas de games andam sofisticadas, felizmente. Nas férias vou ler o primeiro, prometo-me.

E que em 2017 sejam de muitas leituras! Mais do que possamos dar conta, porque, diferente daquelas camisetas com datas que ninguém usa depois, livro bom não envelhece fácil. Fica até melhor.

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Assunto crônica

Natal de fim de semana

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Ilustra: FP Rodrigues

 

O Natal passou que ninguém viu. Na semana passada, muitos correram durante a noite para as compras e os shoppings ficaram lotados com pessoas se atropelando como acontece em todos os anos. E como acontece em todos os anos alguém mais crítico parou no meio do corredor, pôs as sacolas no chão para descansar da maratona, olhou em volta e perguntou, imbuído de certo olhar analista: cadê a crise?

O Natal passou e todo mundo viu, porque me parece ser a data mais importante do ano para a maioria católica, e me parece que católica ainda é a maioria. Em termos subjetivos, só perde para o próprio aniversário, mas olhando para o mundo com um sentido de coletividade não tem concorrência.

E teve especial de Natal do Roberto Carlos se atualizando com os cantores do ano para agradar os idosos e os mais novos, a musiquinha da Leader Magazine só não deve irritar mais os funcionários da loja porque eles imaginam o quão ruim seria não ter sequer aquele emprego (meu irmão já trabalhou lá, e foi demitido sumariamente), teve um monte de Papais Noéis que conseguem trabalho emulando as temperaturas do hemisfério Norte, mas ninguém reclama dessa falta de lógica porque no fundo todo mundo sabe que o mito do Natal tem na verdade pouquíssima lógica como um todo.

Porque teve o inescapável e absurdamente figuraça Inri Cristo nos lembrando: o aniversário de Jesus é em março. A partir do ano 274, os romanos começaram a comemorar 24 de dezembro como “o dia do sol invicto”, porque era um tipo de vitória nasceu o sol depois da noite mais longa do ano. E com o tempo juntaram tudo numa festa só, e corrigir isso agora é algo que fica para as calendas gregas.

E teve um dos meus melhores amigos, irmão de vida inteira, que perdeu a mãe num acidente sem o menor sentido às vésperas do Natal, fazendo-nos questionar o sentido disso tudo – e o sentido disso tudo me foi revelado numa foto dele erguendo a filha na praia, com um céu azul imenso ao fundo.

E foi o Natal da falta de tempo num ano que se arrasta e vai arrastando tudo que encontra pela frente. As famigeradas Retrospectivas serão de lascar, por conta de tanta bagaceira que assolou tudo ao longo do ano – as pessoas, o Rio de Janeiro, o país e o mundo.

E nós aqui tocando o barco, olhando aflitos esse fim do segundo tempo e torcendo para  que não tenha prorrogação.

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Assunto crônica

Livros que me leram em 2016

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Tive um ano bem agitado como autor e leitor. Corri bastante estrada por conta do primeiro romance, o que me fez entender na prática em como esse tipo de livro tem um grande peso na balança literária. Mesmo porque no meio disso lancei um novo infantil, que me trouxe e traz muitas alegrias, mas no fim das contas o epíteto que fica para o sujeito é Fulano, autor do romance X. Mas isso é assunto para ensaios, críticas e teorias literárias, categorias que me trazem certa preguiça quando estou a escrever crônica.

Por essas e outras que prefiro fazer um balanço do ano como leitor de literatura. Todos repetimos que é preciso ter mais leitores, e parece que o fluxo de ideias está cada vez mais corrido no mundo. Estão aí as redes sociais com suas realidades instantâneas que surgem e desaparecem a cada momento, o que dificultaria o lance da leitura, atividade que, pela sua natureza, requer um ritmo mais lento. E por isso mesmo é que talvez ler literatura seja uma das grandes (re)descobertas dos novos tempos.

Sem mais delongas, segue a lista de uns livros que me disseram coisas ao longo do ano. Não sei dizer se são os melhores livros, mas são aqueles que li em contextos favoráveis para tê-los guardado. E, por isso mesmo, foram os livros que melhor leram a mim mesmo em 2016:

Céus e terra, de Franklin Carvalho – esse romance que li eletronicamente por trabalho me pescou de início. O narrador é um moleque, que é decapitado logo no início e, como um tipo de Brás Cubinhas do sertão, vai retratar os costumes da sua cidade. Logo que morre não vai procurar o paraíso, e sim o pai que nunca teve. O final é de uma beleza comovente.

Sem vista para o mar, de Carol Rodrigues – Só agora consegui ler esse livro, cujo estilo que bebe na oralidade dá uma potência tremenda aos contos. O manejo técnico na prosa curta (não sei se daria certo numa prosa longa) faz com que a narração exponha determinadas crueldades na hora certa. Lembro de ter lido de dia, com luz natural, e cada conto parecia gritar para o céu.

Os contos completos, de Alberto Mussa – O Mussa é um dos melhores contadores de histórias em atividade. E tudo o que ele publica é acima da média. Seus mergulhos na carioquice ancestral e as narrativas orientais são grandes leituras para qualquer hora.

Receita para se fazer um monstro, de Mário Rodrigues – também li primeiro no leitor eletrônico. É um livro de contos de uma crueldade imensa, porque bebe na infância de um mesmo narrador que, já adulto, seria um criminoso. O autor é um estilista, usando recursos interessantes – por exemplo, não tem vírgula no livro todo. Pode ser lido até como um romance.

Liturgia do sangue, de ReNato Bittencourt Gomes – outro livro de contos que pode ser lido como romance. E que também mergulha na violência com uma prosa exata e direta. É dos livros que deveriam aparecer mais.

Onça preta, de Lucrecia Zappi – a autora também está ligada às artes visuais, por isso não sei se ela capricha tanto nas descrições de lugares. A paisagem é tão personagem quanto a protagonista, e isso faz do livro uma viagem dupla para fora e para dentro da trama.

Tentativas de capturar o ar, de Flávio Izhaki – toda vez que digo não ter mais paciência para livros que tratem de livros, aparece um que me derruba. O romance novo do Flávio nos conduz para um interessante jogo de sombras, mas do meio para a frente vamos sentindo que há uma carga emotiva por trás.

Entropia, de Alexandre Marques Rodrigues – o esse primeiro romance é uma sinfonia complexa do autor que, acredito, melhor vem trabalhando a questão do sexo na literatura. O Alexandre é outro mestre do estilo que merece ser estudado cuidadosa e longamente pela crítica.

Poemas do povo da noite, de Pedro Tierra – O único livro de poemas da lista mostra que li menos poesia do que nos outros anos. (Será a influência do romance?) Mas do pouco que li, o livro esse tocantinense me tocou (sem trocadilho) mais. O livro foi escrito durante a ditadura, dentro de uma cela, e o verso “vivo num país de silêncio e gritos” me ficou para sempre.

O metal de que somos feitos, de Walther Moreira Santos – outro bom livro de contos que retrata a infância e a adolescência. Será tendência ou a temática me interessou por eu ter passado o ano falando do assunto, decorrente do romance? (já me assombrando?) De todo modo, imagino um papo entre o autor e o Mário Rodrigues, ambos pernambucanos e afiados.

Outros cantos, de Maria Valéria Rezende – de início fiquei espantado com a precisão com a qual são usados os adjetivos. A jornada para o sertão da protagonista coloca a ditadura numa perspectiva que ainda não tinha visto na literatura, onde quase sempre a ação acontece nos grandes centros urbanos. Um livraço.

Uma selfie com Lênin, do Fernando Molica – o tom epistolar e confessional desse romance mergulha na corrupção e na intimidade do narrador. Muito boa a alegoria da ruína, que é costurada entre o eu e o mundo.

Nihonjin, de Oscar Nakasato – li num voo esse romance, e a concentração permitiu saborear cada frase bem colocada, de forma metódica e cruel, simbolicamente representando a postura nipônica do narrador. A imigração japonesa com todas as suas dores e superações está ali.

A imensidão íntima dos carneiros, de Marcelo Maluf – no voo de volta li esse, e por isso aconteceu o mesmo: a tradição árabe de narrar uma história com toques do maravilhoso fez desse livro uma belezura que não canso de indicar aos amigos, e é com ela que encerro a lista.

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Quase-crônicas de fim de ano

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Nesta época, sou daqueles que começam a ter uma ponta de melancolia ao ouvir as musiquinhas natalinas, com destaques para aquela da Leader Magazine e a constante ameaça da Simone. Isso me faz lembrar do.

Talvez se some o fato de eu fazer aniversário próximo ao Natal, o que me faz lembrar de uma vida inteira ganhando apenas um presente, economia que os mais próximos tendem a manter até hoje, sempre com o argumento irrefreável da crise. Quando não estivemos em crise, ora bolas? Sempre fingi irritação com isso, transformando em piada, ainda mais que.

E como gira o mundo, tenho uma sobrinha pequena que também nasceu por esses dias, e agora é minha vez de ensinar à nova geração os princípios básicos da austeridade. Malu, você precisa entender que nós.

Vão chegando também os balanços de fim de ano e o volume de promessas não cumpridas, quase sempre de maior peso na nossa balança psicológica do que as realizações. Poderia listar aqui somente os originais e livros impressos de amigos e conhecidos que não tive tempo de ler – o que, aliás.

Velhinho, Gripado, Helicóptero, Caju, Missa, Caranguejo, Campari, Boca Mole, Todo Feio. Os apelidos dos políticos na lista da Odrebrecht são hilários, num tempo em que rir para não chorar parece ser a única saída para o povão, já que sair para as ruas num tipo tardio de tomada da Bastilha está fora de cogitação. Repare no.

Porque deveria haver uma campanha: Mais Brecht, menos Odebrecht. Em vez de Bastilha, temos Bangu, onde a maioria não quer ir, e as figuras que estão indo para lá e Curitiba mereciam ser.

Porque, assim como muita gente no país, comecei a contribuir para a Previdência cedo, aos 15 anos. Segundo as novas regras, preciso contribuir exatos 15 anos a mais. Não entendo de contas públicas, mas sei calcular o meu tempo, especialmente o que, por necessidade, parece tempo perdido. Isso só vai mudar quando.

Ganhei presente antecipado. Meu irmão me deu um teclado gamer, pois sabe que esse é um dos meus passatempos preferidos, ainda que não tenha tempo para nada. Digitar nele ainda é um desafio, uma vez que as letrinhas ficam mais altas, fazem barulho diferente, condindo a erros, deslizes, falhas morfológicas involuntárias que geram vocábulos bizarros e apressados. Penso que.

Daí que, nesse estranhamento (Brecht?), no teclado gamer que volto a usar máquina de escrever. Olhando esse periférico que acende, robusto para matar com mais eficácia inimigos digitais, penso em cada palavra, reflito um pouco mais mais antes de.

Claro, leitora, esta não é a primeira crônica que escrevem assim, abortando as frases e encerrando o parágrafo antes de a ideia ser concluída. Roubei essa ideia do grande.

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Gullar, meu professor de poesia

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Depois de uma semana fora para atividades literárias e de trabalho entre São Paulo e Mato Grosso do Sul, começava esta crônica sobre os muitos assuntos que me perpassaram ao logo desses dias, inclusive o último, decorrente do acúmulo, que é o cansaço físico e mental resultante dessa maratona. Organizava a sequência de ideias em parágrafos temáticos, na ordem cronológica inversa, mas sem hierarquia entre elas para depois mexer à vontade, porque a crônica não é relatório de empresa – já bastam os que me esperam no mundo corporativo ordinário –, e sim uma praça para descanso, com direito a parquinho que permita às palavras brincarem na gangorra.

Mas eis que minha mulher entra no escritório e me diz algo que tornou menos relevantes todos esses acontecimentos: “Morreu o Ferreira Gullar!”

Não que desconfie dela. Pelo contrário: é hoje minha fonte mais segura. Mas quase que instintivamente conferi no site do jornal. Não sabia que ele estivera internado, e nem sei se isso era fato divulgado. Fiquei alheio nesses dias, acompanhando, literalmente de passagem, o fatídico acidente com o time de Chapecó, a mudança bizarra na lei contra a corrupção e, falando no assunto, o Renan Calheiros tornado réu, ainda que presidente do Senado. A noite é veloz.

Quando esta crônica chegar à leitura, creio que já terão sido publicadas vários obituários, perfis, análises, matérias, especiais etc. Prefiro lembrar das ocasiões em que estive com ele e seus livros.

Quando estava na faculdade, conhecia poemas isolados do Gullar, como o “Dois e dois: quatro”, que tem aquele quarteto inescapável “Como dois e dois são quatro / sei que a vida vale a pena / embora no pão seja caro / e a liberdade pequena”. Esse poema é formado pelas populares redondilhas maiores, e acredito que esse tempo de cada verso tenha contribuído para que ele se tornasse tão conhecido, pois é a forma/fôrma mais fácil de se decorar – e me lembro de uma entrevista em que o Gullar disse ter sido abordado na rua por um homem que falou o poema inteiro. O poema segue com dísticos trabalhando o elemento da repetição, nas rimas, tendo no centro, entre as ideias mais líricas, aquele lembrando os anos de chumbo em que foram escritos: “como um tempo de alegria / por trás do terror me acena”.

Tenho um amigo poeta dessa época da faculdade, Célio Diniz, que é também artista plástico, e sempre nos reuníamos na casa dele em Pedra de Guaratiba. Discutíamos muito sobre esses assuntos, com aquela pretensão de genialidade típica de alunos de graduação, e me lembro de ter lido o “Breviário de Estética”, do Croce, e o “Argumentação contra a morte da arte”, do Gullar, apenas para poder debater com o meu camarada, que sabia – e ainda sabe – muito mais do que eu. Tempos depois, quando comecei a assistir ao Gullar falando sobre arte, achei-o um tanto radical demais, e voltei ao poeta.

Anos depois, tive a felicidade de tê-lo como professor em oficina literária, no ótimo programa Escritor Visitante que a universidade mantinha, permitindo que os alunos pudessem acessar os ensinamentos de grandes autores (eu já havia feito com o Sérgio Sant’Anna e o Antônio Torres, e queria fechar a tríade conto, romance e poesia). Por conta da necessidade de sair cedo para trabalhar na videolocadora, não fiz todas as aulas dele. Mas me lembro de uma em que ele se dedicou a trabalhar meu poema. Fez apontamentos técnicos excelentes, e o soneto acabaria entrando no meu primeiro livro, em 2006.

Tempos depois, quando trabalhava na PUC-Rio, ajudei na organização de um evento que o receberia (havia lançado o ótimo “Em alguma parte alguma”). Quem lida com literatura e vive no Rio de Janeiro certamente já assistiu o Gullar palestrando. Entre os causos de sempre que falou uma frase daquelas na longa birra com os paulistas: “a Poesia Concreta deveria se chamar Poesia Abstrata”. Conversando com ele depois, perguntei se aquela coisa com os irmãos Campos era um tipo de mágoa recíproca e eterna. Ele bateu o meu ombro e respondeu, rindo: “é tudo bobagem de uns velhos”.

Ferreira Gullar fará falta entre os vivos. Tenho uma estranha sensação de que esses grandes nomes da literatura – assim como na educação – que marcaram o século XX não estão sendo substituídos, talvez porque a sociedade não julgue essas áreas tão relevantes para fazer relevantes os indivíduos que atuam nelas. Mas isso é assunto para outra crônica.

Por hora fico agradecido pelo convívio com ele. E já que falei de Pedra de Guaratiba, cito os versos finais do poema “Uma pedra é uma pedra”: “ e assim / o homem tenta / livrar-se do fim / que o atormenta // e se inventa”.

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Na balada

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Escrevo de São Paulo, onde cheguei para participar da Balada Literária, e também onde devo ficar por alguns dias por compromissos de trabalho. Sampa tem uns prós e contras, como em qualquer lugar, mas por conta da escala da cidade os prós tendem a ser muito grandes, como é o caso da culinária, e os contras seguem o mesmo caminho. Vide os engarrafamentos. Diferente do Rio de Janeiro, quando geralmente o trânsito diminui aos domingos, aqui parece que os carros saem de casa para aproveitar a cidade, uma vez que estão liberados, enfim, do rodízio.

Mas fico com os prós. A Balada Literária é uma catarse cultural tocada pelo também catártico Marcelino Freire. O escritor e agitador pernambucano consegue a proeza de, em temos bicudos como estes, realizar um festival literário contando com a participação de dezenas de artistas de todo o país, alguns até mais do mainstream, como Ney Matogrosso. Há quem diga que essa articulação do Marcelino se dá porque ele, na verdade, tem pelo menos seis irmãos gêmeos. Simultaneamente, ele está dando uma palestra num lugar, uma oficina em outro, fazendo curadoria de outra coisa, visitando instituições e compondo banca de prêmio literário. Seus livros, naturalmente, são escritos nos salões de embarque.

Balada. Um termo com o qual os cariocas implicavam (eu incluso) há alguns anos. Designava a vida noturna da cidade. Achávamos isso muito esquisito no Rio, e por isso chamávamos, bestamente, de night, o que era pior ainda. Agora que saí desse mercado, por conta de idade (ui) e casamento (viva), não sei direito como chamam. Mas creio que aqui, pelo menos, ainda seja o mesmo. Parece que no Rio já estavam adotando também.

Mas o conceito da Balada Literária é altamente interessante. As programações, apesar do nome, acontecem ao longo do dia. E o público vai mesmo. Como hoje fosse um dia quente, imaginei que raros iriam investir seu pouco tempo de domingo para ouvir escritores, mas havia um grupo bom lá e foi uma lufada de esperança na literatura.

Balada, no Rio de Janeiro, pode ser levar uma bala perdida. Há algumas semanas, fui acompanhar a Flupp, na Cidade de Deus. É um evento literário lindo e que, pela sua natureza, de Festa Literária das Periferias, chega onde muitos os projetos culturais dizem chegar, mas apenas para conseguir patrocínio. Poucos dias após o evento, irrompeu essa guerra entre polícia, traficantes e milicianos que, até hoje, não acabou. E fico pensando que as ações culturais não fazem nem cócegas nos problemas sociais. Talvez façam. Ou diminuam. Ou não tenham que fazer, deixando em aberto, como possível consequência.

Porque, às vezes, tudo o que queremos é apenas curtir a balada.

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Helicópteros

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Helicópteros passaram bem pertinho da janela onde trabalho por esses dias, quanto procuravam cerca de 50 bandidos que se escondiam no matagal.

Minha mãe diz que, quando éramos crianças, meu irmão e eu ficávamos loucos de felicidade quando víamos um helicoptêro.

Na semana anterior, um tiro de raspão havia atingido um funcionário lá da empresa.

Apesar do muro alto, parece que a bala fez uma curva, como nos filmes.

Depois dos helicópteros, ouvi tiros e saí da sala. Ao retornar, não consegui trabalhar direito e fui para o centro médico, tonto e com dores de cabeça.

Me deram um comprimido de paracetamol.

Um helicóptero caiu e morreram os quatro policiais que estavam dentro. Não sabem ainda se foi por pane ou tiros.

Três coisas param no ar: beija-flor, helicóptero e Dadá Maravilha.

Em vídeo, mães dos jovens mortos na guerra pediam autorização para procurar os corpos dos filhos no mato.

Havia aquelas séries da televisão com helicópteros: Água de Fogo e Trovão Azul. Meu irmão gostava mais do primeiro e eu do segundo, mas não brigávamos. Por isso.

O helicóptero caiu (ou foi derrubado) bem em frente ao meu trabalho, na beira do rio sujo.

Chopper Command era um jogo de Atari em que você controlava um helicóptero cuja missão era proteger uma caravana de outras aeronaves. Será que algum dos quatro policiais jogou esse game na época e recentemente pensava lá do alto “ah, se o eu moleque visse isso aqui”?

Foram encontrados 7 corpos na localidade chamada Brejo. Mortos com tiros.

Nos 4 mortos no helicóptero não havia perfurações de balas. No entanto, leio na notícia sobre o enterro: “os policiais foram homenageados com honras militares, o que inclui uma salva de tiros.”

Não se sabe ainda o que derrubou esse helicóptero, mas uma coisa é certa: não havia rico dentro e fora dele. Há alguns anos, 450 quilos de cocaína não foram suficientes para evitar que uma aeronave levasse nenhum dos poderosos envolvidos ao chão.

Não faz muito tempo que um acidente de helicóptero matou pessoas ricas e evidenciou as relações de corrupção do então governador com empreiteiro. Esse político está agora no presídio de Bangu, aqui na mesma Zona Oeste carioca.

Ouço agora o som de mais helicópteros sobre as nossas cabeças, indo na direção da Cidade de Deus. Na infância, gostávamos de amarrar libélulas com um pedaço de linha, e elas iam voando, voando, voando…

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Assunto crônica

Histórias da FLUPP

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Ilustra: FP Rodrigues

Na última semana, estive pela Festa Literária das Periferias – Flupp. O evento aconteceu aqui na Cidade de Deus, perto da minha casa. A Zona Oeste carioca não recebe tantos investimentos culturais – não pega o capital concentrado na Zona Sul nem tem a mística suburbana na Zona Norte –, daí foi um privilégio esse tipo de acontecimento nestas plagas.

Neste ano, a Flupp recebeu o prêmio de melhor festival literário do mundo, batendo a própria Flip que lhe dera a inspiração para o nome e o conceito inicial de colocar o escritor em evidência. Se um lado a Flip modificou profundamente os formatos de eventos literários no país inteiro, sendo matriz para dezenas de projetos com as iniciais F e L, a Flupp foi a que mais conseguiu dar um salto de ousadia. Isso porque a literatura, seja na produção como no seu consumo, está historicamente associada a um tipo de público mais iniciado, que se concentra nas localidades acessíveis aos ricos (não aos maiores ricos que, em geral, são estúpidos e não leem nada). Então a turma decidiu fazer a festa literária justamente dentro das comunidades, inicialmente associadas às Unidades de Polícia Pacificadoras. Pelo que a leitora deve acompanhar pelo noticiário, as UPPs não deram certo, mas a Flupp sim.

Participei da primeira edição do evento, em 2012, no Morro dos Prazeres, comunidade carioca colada ao bairro de Santa Teresa. O homenageado, convém lembrar, era o escritor carioca Lima Barreto. Segundo acaba de ser divulgado, será o homenageado da Flip em 2017.

Uma vez que frequento projetos literários de todos os portes, fico sempre preparado para encarar qualquer tipo e volume de público. Chovia naquele sábado e tive uma grande surpresa ao me deparar não só com uma estrutura imensa para os padrões cariocas, como também ao ver que o espaço estava lotado. Era dentro da Flupp Parque, braço do evento mais voltado para o público juvenil, mas havia famílias inteiras lá, e tivemos uma tarde maravilhosa. Aqueles moradores não precisariam mais ir aos lugares chiques para tentar entrar nos eventos culturais onde, tradicionalmente, não se sentiriam bem-vindos. Agora havia um festival literário de primeira feito para eles.

Desde então, em todo evento de que participo, seja como autor ou do lado de dentro do balcão, penso sempre na metodologia e visão da Flupp. Reclamamos sempre da falta de leitores, de consumidores de bens culturais que não sejam aqueles mais populescos. Mas numa olhada rápida, por exemplo, nos projetos aprovados pelas leis de incentivo, como a Rouanet ou a de ISS, para vermos que os proponentes são, em sua maioria, as elites de sempre. E para justificar o uso de dinheiro público inserem umas cotas de distribuição de ingressos ou livros ou quaisquer produtos para escolas públicas ou “crianças carentes” que nunca irão conhecer. A Flupp faz exatamente o inverso: a periferia é o centro da coisa.

Neste ano, me escalaram para entrevistar jovens que participaram de um game de perguntas e respostas para celular envolvendo o autor homenageado, Caio Fernando Abreu, além de questões sobre literatura carioca de periferia. Novamente fiquei surpreso, pois descobri serem alunos da escola pública onde estudei no Ensino Médio (quando ainda era Segundo Grau, ó tempus fugit).

Diferente da minha época (que dor nas costas!), esses alunos têm mais contato com os livros, ainda que se orgulhando de ler mais autores estrangeiros do que nacionais. A ideia de leitura não é mais associada a coisa de nerd ou de alguém deslocado. Lembro-me de uma vez em que, como não queria jogar futebol ou qualquer outra coisa no tempo vago, fui para a biblioteca e me aplicaram um belo bullying (o termo não existia, mas a prática sim) porque estava lendo “Eram os deuses astronautas?”, do Erick non Däniken. Tempos depois descobri que de fato as teorias desse autor são uma grande picaretagem, mas duvido que foi por causa disso que os colegas me trollavam.

De todo modo, já marquei de visitar a minha escola e conversar com os jovens alunos sobre leituras. Só um projeto como a Flupp, aqui nas periferias cariocas, permite que a gente (re)encontre e dialogue com quem somos em essência.

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Assunto crônica

Das pequenas e grandes resistências

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Semana passada visitei uma escola pública para conversar com alunos na sala de leitura. Sempre tento conseguir tempo para esse tipo de atividade, que é das experiências mais maravilhosas para quem trabalha no ramo das ideias. Mais do que nunca, ceder nosso tempo ao encontro com os jovens não é caridade ou favor a conhecidos que trabalham nas redes de ensino, mas mergulhar na fonte mais importante que constitui o caldo social.

(Pobres dos meus colegas de escrita que, na sua segurança de classe média, torcem o nariz para esse tipo de público, enquanto aguardam convites para eventos literários chiques.)

Quando fui aluno da rede pública, praticamente durante toda a vida de estudante, não havia muito espaço para que expressássemos opinião de forma séria. O jovem pobre era um potencial bandido e, além de não ser ouvido, sofria um bullying constante até fora dos muros da escola. Lembro-me de um episódio, da época do Ciep, quando fomos dar um passeio (rolezinho?) lá pelo calçadão de Madureira depois das aulas. O segurança das Lojas Americanas nos acusou de estar roubando doces, levando-nos para um canto da loja. Em seguida, com outro sujeito que estava sem uniforme, nos mostrou um martelo de alho, com que ameaçou esmagar as nossas mãos caso voltássemos à loja. Amedrontado, não entrei mais lá de uniforme, ainda que nunca mais o nosso grupo de colegas tenha falado sobre o assunto, dada a então normalidade daquele tipo de cena.

Hoje é possível que esse tipo de situação aconteça. Mas um aparelho celular com câmera poderia filmar toda a ação dentro da loja, que poderia se espalhar nas redes sociais até que a rede de lojas se desculpasse publicamente. O preconceito existe e, pelo cenário político em torno das áreas de Educação e Cultura, infelizmente não deve sair de cena tão cedo. No entanto, me parece que temos uma geração de jovens mais atenta, com acesso a informação e direito a voz.

O fenômeno das ocupações das escolas é um plot point histórico. Aprendemos que matar aula era uma coisa boa, evitando o máximo possível a permanência no espaço escolar. E agora vem a garotada promovendo justamente o contrário. Precisamos urgentemente encontrar um antônimo para matar aula – viver aula?

(Acabo de ler que duas escolas ocupadas têm desempenho acima da média no ENEM.)

Penso isso tudo e volto ao papo na Escola Municipal D. João VI. Trata-se de uma unidade de integração, em que alguns alunos com diferentes deficiências convivem com os demais. Enquanto eu falava com a galera, um aluno fez várias perguntas a respeito de literatura, quadrinhos e mercado de trabalho. Esse jovem, Lucas, é autista.

São dessas pequenas resistências que se formam as maiores, e nos dão esperança de que nossa sociedade saia dessa barbárie cyberpunk para a qual ensaia caminhar.

Leio o comovente e duro livro “Poemas do povo da noite”, do tocantinense Pedro Tierra. Foi escrito enquanto o autor estava preso, no regime ditatorial, quando tinha seus vinte e poucos anos. E no primeiro verso do primeiro poema, diz: “Perdemos a noção do tempo”. Quarenta anos e duas gerações depois, acho que poderemos ressignificar essa matéria chamada tempo com aqueles que ainda os têm nas mãos. Esses alunos, para mim, representam essa resistência: à opressão do mundo, da política, de um futuro míope.

Uma das perguntas que me fizeram era sobre de onde vêm as ideias para se escrever. Comentei com os alunos: estar aqui com vocês é uma grande motivação e me enche de ideias. Por isso esta crônica é dedicada aos alunos e professores da Escola Municipal D. João VI, de Higienópolis, Rio de Janeiro.

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Assunto crônica