Category Archives: crônica

As palavras pequenas

FP_Rodrigues_VB_28_junho_16

Semana passada visitei uma ONG aqui em Jacarepaguá, a fim de fazer uma leitura para as crianças que ela atende. Eram coisa de 30 pessoinhas entre 4 e 6 anos, residentes ali na Cidade de Deus. A minha Bianca estudou com duas das professoras de lá, e sempre dizia que as amigas queriam que eu fosse conhecer a garotada.

Aproveitei o lançamento do novo livro infantil, “Palavras pequenas”, que foi pensado justamente para essa galera, e fomos lá. A Bianca me deu a ideia do livro há uns anos, quando estudava a obra da psicolinguista argentina Emilia Ferreiro. Lembro-me bem: estava dirigindo e a minha mulher – então namorada – me falava sobre essa questão das crianças sentirem dificuldade de representar um elefante, que é uma coisa imensa, com poucas letras, enquanto uma formiga é bem diminuta e tem quase a mesma quantidade de caracteres. Não consigo conversar direito enquanto dirijo, e chego a interromper uma frase no meio quando faço uma curva de 90 graus, retornando a ela apenas quando sigo novamente em linha reta, o que já se tornou motivo de trollagem geral – à qual respondo com o argumento bobo de que homens são focados etc. Mas ainda assim a ideia estacionou num canto da minha cuca e engrenou depois sob a forma desse livro.

Mesmo usando meus moleques aqui em casa como cobaias dos meus escritos para crianças e jovens – espero não estar causando nenhum trauma com os experimentos que não dão certo –, não havia feito ainda um test-drive com um grupo maior de crianças, pois o livro sequer foi lançado. Ele é mais enxuto de texto e maior em termos de ilustrações, feitas pela também argentina Anabella López e, sobretudo, de ideias. Nesses casos, a figura do autor se resume a passar o recado e esperar que elas, as ideias, cutuquem de alguma forma a cabeça dos leitores.

(Peraí, mas não seria essa a função da literatura como um todo, recado e esperança? Bem, por essas e outras que, a meu ver, os livros para crianças trazem sempre algo de fundamental que, muitas vezes, fica em segundo plano no mundo literário dos adultos.)

Em dado momento, quando disse que o protagonista do livro, chamado Leo, descobre que palavras pequenas representam coisas grandes, como “céu”, comentei que se trata de algo muito vasto e distante. “Ninguém consegue tocar no céu, mesmo subindo ali no alto daquele morro, porque fica muito longe”, e apontei para o ponto mais alto nas proximidades, onde fica a Igreja do Loreto.

Depois que terminamos a leitura, a professora conduziu uma oração junto com as crianças, seguida por um mega abraçaço que vai me aquecer para o resto da vida. Não sou religioso stricto sensu, mas no sentido lato foi impossível não segurar as lágrimas com aquela retribuição.

Quando me recuperava, uma menina bem pequenininha se aproximou e disse uma das frases mais agudas e fortes que já li ou ouvi: “Tio, o meu pai tocou o céu”.

E ficou me olhando para ver se eu entendia a sua metáfora, que está além dos livros e, com um poder imenso, inverteu nossa posição, pois agora ela era a escritora que passava recado e esperança para o seu leitor. Surpreendido e atônito, pensei “o meu também, minha amiga, mas você é ainda tão jovem para esse enredo”.

E não formei palavra: na limitação do meu silêncio, como se estivesse fazendo mais uma curva na estrada dos meus dias, consegui apenas dar mais um abraço nela.

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Assunto crônica

O escritor sem livro

FP_Rodrigues_VB_21_junho_16

Aproxima-se a Flip, o evento cultural mais legal de São Paulo. Epa! A Festa Literária de Paraty acontece geograficamente no estado do Rio, na pontinha sul fluminense, mas quem já foi sabe que se trata de um evento fundamentalmente paulista. O que é até bom. As trocas só se dão com o diferente.

Fui a todas as edições, seja para flanar e encontrar amigos, como nas primeiras, participar de programações, como outras, ou a trabalho. As últimas têm sido a junção dos três itens, motivo pelo qual tenho saído de lá esgotado. Mas vale cada tropeço naquelas pedras de pé de moleque.

Lembro-me de certa vez, quando escritores de literatura ainda eram a maioria na programação principal, que determinado convidado nunca havia publicado um livro. Não contavam participações em antologias, tampouco os blogs literários, que estavam em alta na época como espaço democrático para se chegar ao leitor e mesmo para que os autores se conhecessem. O importante era ter livro publicado.

Faz todo sentido pensarmos que o escritor se legitima ao ver seu trabalho impresso, costurado ou colado em cadernos cercados por uma capa bonita, com ISBN no verso, texto da orelha com pequena biografia e uma logo de editora, carimbando um selo de qualidade no título e autor. Assim como cineasta aquele que fez e exibiu um filme, artista plástico quem expôs suas produções, músico quem apresentou um espetáculo com suas composições ou de outros, e por aí vai. Coordeno um projeto que descobre autores inéditos, protegidos por pseudônimo, e os coloca numa grande editora. A ideia é que, publicados, iniciem uma carreira literária. Mas a literatura, líquida e etérea, tem algo a mais que foge desse sistema.

Há uns anos, quando frequentava oficina literária, conheci o escritor e jornalista (hoje amigo, felizmente) José Castello. Li de uma tacada o seu livro “Inventário das sombras”, no qual relata a sua experiência com escritores como Hilda Hilst, Raduan Nassar, Bioy Casares e Clarice Lispector. Mas um capítulo me chamou a atenção: “João Rath – o escritor que não escreveu”. Tratava do jornalista com quem Castello convivera, e que possuía uma imaginação muito fértil, como se do seu entorno brotassem narrativas das mais variadas: personagem de um livro jamais escrito. Daí que um conceito de literatura tenha aparecido e me acompanhado desde então, o de que o livro é apenas parte de algo maior. De todas as artes, considero a literatura a mais abstrata, pois ela se dá fundamentalmente no campo das ideias, um mundo silencioso e abstrato que cada indivíduo possui. Assim, o escritor cria como se fosse uma mistura de fonte e mensageiro, meio de campo que faz um lançamento para o seu atacante (o leitor) lá na frente, na esperança de que a jogada termine com um gol.

Estou escrevendo esta crônica em Ribeirão Preto, antes de dar uma palestra na feira do livro local. Há uns dias, uma escritora iniciante reclamou que havia participado de um evento desses e, ao terminar, não havia seu livro para venda aos interessados. Esse paradoxo é bastante comum nos eventos literários de todo porte e incomoda muitos autores, que saem de suas cidades para divulgar algo que não existe para o público presente. Isso renderia outra crônica – ou talvez uma reportagem mais séria e pretensiosa, e fica a dica aos jornalistas da área. No entanto, nossa literatura também está presente nas perguntas, nas conversas e nos abraços partilhamos com os leitores: mesmo nas selfies que adolescentes tiram conosco, para depois nos levar para suas redes sociais. São diferentes jogadas nesse futebol complexo e difícil que é ser escritor no Brasil.

“Livros são papéis pintados com tinta”, já disse o Fernando Pessoa no seu conhecido poema “Liberdade”. Não sei ainda se haverá livros meus para venda ou mesmo se haverá quem se interesse por eles. Trouxe uma meia dúzia na mochila, os quais geralmente não voltam, mas o importante mesmo é a possibilidade da troca de ideias, levar e deixar algo do campo. E se ao fim dessa jogada não houver gol, bater na trave já terá sido um grande lucro.

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POEMAÇO contra o olvido

Carolina_Vigna_VB_07_junho_16

Semana passada estive no Ciep que havia sido invadido e depredado. Conforme ameacei na crônica anterior, reuni um grupo de escritores de primeira e fomos lá conversar, ler poesia, gritar, rir e chorar com alunos e professores. Apelidamos o evento de POEMAÇO (assim, em maiúsculas mesmo) e fomos lá no famoso CDA, como é conhecido o Centro Integrado de Educação Pública Carlos Drummond de Andrade.

Fui aluno dessa escola em 1989, ano importantíssimo da nossa história – tanto que usei como ponto de partida para o primeiro romance: queria revisitar a época transportado com o olhar da ficção. Antes, meu irmão e eu tínhamos sido alunos de outro Ciep, na Av. Brasil, onde também retornei há uns anos para conversar com umas turmas. Sempre que passo em frente a essas escolas, um pequeno filme é exibido na cuca, tanto das coisas boas quanto das ruins que aconteceram nesses espaços.

Nosso pingue-pongue sobre a tampa da caixa d’água, vez por outra, era interrompido por um tiroteio que nos fazia correr para dentro do prédio. Nesse período fazemos amigos de quem temos saudade a vida inteira. Reencontrá-los nas redes sociais ameniza um pouco, mas a vida adulta mostra naquelas fotos apenas umas frestas da lembrança, uns vestígios dos garotos que um dia fomos, num sentimento mezzo doce mezzo triste.

Veio agora uma frase do Millôr Fernandes: rever é perder o encanto. Mas revisitar a escola onde se estudou é outro lance. Voltar para o Ciep CDA teve agora um sentido maior que um reencontro – mesmo porque tenho ido lá nos últimos anos, regularmente, inclusive uma aluna me mostrou no celular uma foto nossa do ano passado. Agora a escola tinha sido invadida, quebrada e roubada, como se já não bastasse o abandono pelo qual vem passando ao longo de tantos anos, de tantos governos.

Assim como vários escritores, tenho um carinho especial por escolas. Mesmo não sendo um autor de editoras didáticas – essas que fazem um trabalho mais incisivo nas redes públicas e particulares, algumas colocando a visita do autor condicionada à adoção dos seus livros –, raramente recuso um convite, dando um jeito de encaixar no meu pouco tempo livre. Fui professor de sala de aula por apenas um ano, depois mais um em cursinho, e abandonei uma matrícula da rede estadual mesmo antes de assumir o cargo. Creio que a presença na condição de autor permita um tipo de didática diferente sobre ideias e livros, que se soma ao trabalho da escola – ou talvez só sirva para isso mesmo. Há uns anos, aceitei o convite da Secretaria de Educação do Estado para um cargo de gestor, confiante na possibilidade de fazer mais pela rede pública. Nas reuniões com as outras chefias, via mais especialistas em Power Point e anglicismos da moda do que gente preocupada com os muitos problemas por que passam as escolas. Tratar de questões diretamente ligadas ao ensino era, muitas vezes, motivo de piada, num tipo perverso de bullying. Minha indignação só aumentou.

Assim como política, religião e futebol, é comum encontrarmos a todo tempo especialistas falando bonito sobre educação. De candidatos bem-intencionados a tubarões que fornecem serviços e produtos salvadores, soa estranho quando vemos o que de fato chega à garotada, o que realmente se converte em ensino.

Daí a importância do POEMAÇO. Foi nessa escola que li pela primeira vez o poema “Memória”, do Drummond. O verso “nada pode o olvido” foi estranho porque não conhecia essa palavra – parecia “ouvido” escrito errado. E aprendi, para nunca olvidar, que significava esquecimento.       Semana passada tivemos mais um dia de aula. Écio Salles, Flávia Côrtes, Otávio César Jr. e Letícia Brito, meus atuais colegas de ofício, foram lá comigo e me ajudaram a misturar a vida da escola com a escola da vida, dizendo para aqueles jovens que nunca se esqueçam daquele tempo precioso. Conforme aprendi num livro de literatura, a poesia é atemporal, e por meio dela é que podemos aprender sobre passado e futuro, como se fosse nosso dever de casa.

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Uma canção para as Beatrizes

Carolina_Vigna_VB_31_maio_16

Adolescente luta para superar trauma de estupro coletivo na Praça Seca

Os alunos do Ciep municipal Carlos Drummond de Andrade,
na Praça Seca, Jacarepaguá, estão sendo praticamente
expulsos da unidade, devido aos ataques frequentes
de vândalos e bandidos. No fim de semana passado,
o Ciep foi invadido e totalmente depredado.

Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças. “Canção amiga”, poema de Carlos Drummond de Andrade, na nota de cinquenta Cruzados Novos. Lançada em 1989, ano em que estudei no Ciep. Beatriz não tinha nascido ainda.

Em pouco tempo, a nota deixou de valer, e desapareceu. Mas a escola não foi tirada de circulação. Foram lhe tirando a carne, o ritmo, o alimento, mas a poesia dela continuou. O prédio, esse retângulo cheio de olhos para a rua, é uma carcaça de outros tempos gloriosos e imponentes, como um cemitério de elefantes. As coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão. E ficaram.

Os homens adormeceram e despertaram as crianças. A Beatriz nasceu nesse mundo caduco, onde meus companheiros estão ainda todos taciturnos mas nutrem grandes esperanças. Seguimos de mãos dadas.

Eu tinha 13 anos quando estudei no Ciep. A Beatriz não estudou lá, mas foi por essa idade que ela já despertou outra criança, porque foi essa a canção amiga que o mundo cantarolou nos seus ouvidos. E é a canção que continua reverberando em tantas beatrizes para as quais estamos cegos.

Foi semana passada que aconteceu essa mescla trágica dos abandonos.

Por isso eu te peço perdão, Ciep, por te estuprarem.

Por isso eu te peço perdão, Beatriz, por ter sido invadida.

Eu te peço perdão, Ciep, pois quem devia te proteger foi te deixando pouco a pouco à mercê da crueldade animalesca dos homens e do mundo.

Eu te peço perdão, Beatriz, por dizerem que a culpa foi tua, por não haver porteiro nem vigia noturno, e tuas instalações estarem acessíveis para qualquer um que estivessem de passagem por ali.

Eu te peço perdão, Ciep, por te dilacerarem covardemente. Dói na alma, mais que no teu útero, e só tu entendes, só tu sentes as consequências que virão nas sombras de cada dia.

Tu sabias dos riscos, Beatriz, apesar da aparente segurança do teu entorno. E assim foi que te lançaste à sorte dos murmúrios, da oferta fácil para quem quisesse violar os teus recursos.

Enquanto tu dormias, Ciep, invadiram também os teus sonhos, e eles foram depredados quando deviam ter sido erigidos por essa massa abstrata que chamamos de sociedade.

Somos e seremos sempre os teus alunos, os teus filhos, teu reflexo mais profundo. E é por isso, Beatriz, que o teu abandono não é absoluto nem permanente. Tua estrutura permanece, e de ti não desistiremos.

Porque o que te levaram, Ciep, não destrói em definitivo a tua estrutura, que é humana.

Tu não és a primeira Beatriz invadida e depredada, tu não és o primeiro Ciep estuprado. Tampouco garantimos que serão os últimos.

Mas apenas hoje, no espaço limitado e tímido de uma crônica, eu te peço perdão, mas espero que não nos perdoe. Sobretudo, não nos perdoe, pois do perdão salta-se rapidamente para o esquecimento. Não nos perdoe, porque tu és a verdadeira rosa do povo, e rogo que nos lembre a cada dia do cuidado com a tua existência bela, imperfeita e necessária.

P.S.: amanhã, dia 01/06, vou ao Ciep Carlos Drummond de Andrade com outros escritores voluntários para um dia de atividades culturais oferecidos a alunos e professores, que estamos chamando de POEMAÇO. Esta crônica será lida em homenagem à Beatriz.

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No balcão da livraria

(crônica publicada no site Vida Breve)

Nesta semana fiz a moderação de um debate cujo título era “O paraíso é uma espécie de livraria”. Tratava-se de uma referência à famosa frase do Jorge Luis Borges. Na verdade, não era uma frase, e sim um verso. Ou melhor, dois, do belíssimo “Poema de los dones”. O texto do Borges diz, decassilabicamente: “yo, que me figuraba el Paraíso / bajo la especie de una biblioteca”. Posso estar errado, mas talvez tenha havido uma confusão ao traduzirem o termo para o inglês (library) e depois voltou ao português na chamada casca de banana, em que palavras parecem uma coisa e na verdade são outras.

Palavras parecem uma coisa e na verdade são outras. E não é essa lacuna de equívocos, armadilhas, brincadeiras e jogos entre o que se lê e o que se pensa que se constrói toda a literatura? Posso estar errado também. Mas rogo à leitora que pare esta leitura e dedique uns minutos do seu tempo para ouvir o próprio Borges falando o “Poema de los dones” aqui. Se gostou da voz do escritor argentino, a leitora pode lê-lo aqui. E depois, se quiser ter acesso a ele o tempo inteiro, entre numa livraria e compre um livro dele.

Uma coisa boa de mediar um bate-papo entre escritores é que ouvimos mais do que falamos. Daí que tive uma breve aula com os autores que compunham a mesa. Entre a jovem Alice Sant’Anna e os seminovos Marcelo Moutinho e Flávio Carneiro, aprendi muito sobre a história das livrarias no Rio de Janeiro, com toda a vivência cultural que permeia esse comércio, do século XIX para os nossos dias.

Foi perguntado aos participantes sobre o quanto a presença em livrarias contribuiu para que eles se decidissem pelo ofício literário. E gostei muito de saber que o primeiro emprego da Alice foi numa livraria. Que privilégio entrar no mundo do trabalho com livros e pessoas ligadas a esse universo nos cercando. Não pude deixar de comparar, mentalmente, com o meu primeiro emprego numa lanchonete, e como teria sido se, no lugar de hambúrgueres e batatas fritas, houvesse livros. Mas logo em seguida me dei conta de que vários caminhos podem levar a um mesmo fim. De todo modo, como seria bom para o país se a vida profissional de muitas pessoas fosse iniciada numa livraria…

Por conta da polêmica em torno da extinção do Ministério da Cultura, que passaria a ser uma secretaria do MEC (e enquanto escrevo esta crônica fico sabendo que a governo recriou o MinC), fiquei espantado ao ver a reação de tanta gente sobre a área das artes. Muitas pessoas acreditam firmemente que cultura é algo secundário e dispensável, que agora sim, sem o dinheiro fácil do MinC, os chamados “artistas” iriam trabalhar. Como tanta coisa atrasada que temos, ainda persiste uma visão segundo a qual as atividades ligadas às artes são fruto de desvario e falta do que fazer. A literatura, mais solitária das artes, seria um lance de nefelibatas, aqueles que vivem nas nuvens.

E não deixa de ser, mas também. Ou melhor, vamos às nuvens e aos infernos, mas retornamos. A arte salta da vida e volta para ela, trazendo novas formas de ver e entender o mundo. Trabalhar nessa área é, também, mergulhar nos limites do entendimento humano, algo de risco e que precisa ser respeitado e valorizado.

Temos poucas livrarias no Brasil, algo em torno de três mil. É bem pouco, se considerarmos o aumento do poder de compra que a população em geral teve nos últimos vinte anos. Gastar dinheiro com esses objetos está bem longe das prioridades para a maioria da galera, cujas urgências são outras, quase sempre, essas sim, bem mais efêmeras. Inclusive sou bastante solidário ao escritor Marcelino Freire: nem a parentada compra os livros que ele escreve e publica. O Brasil não está lá, longe e abstrato, mas bem aqui, do nosso lado, no atacado e no varejo.

E é impossível não associar uma coisa à outra. Enquanto as pessoas não entenderem que a leitura abre cucas, que a arte é fundamental para o crescimento humano, vão ficar para sempre de fora desses paraísos que temos à disposição – sejam livrarias ou bibliotecas.

 

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Manoel de Barros como antídoto para o mundo caduco

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(crônica publicada no site Vida Breve)

Estive por esses dias entre Campo Grande e Corumbá, no Mato Grosso do Sul. Ainda que minha ida para aquelas bandas tenha sido em missão de trabalho, tentei aproveitar cada intervalo para ler as entrelinhas das cidades, como sempre faço. Nunca tinha ido a esse estado, de modo que, entre reuniões e visitas a espaços durante manhã, tarde e noite, me vali da perspectiva da primeira vez para ser tomado pelas surpresas das descobertas.

Levei comigo na bagagem de mão, além do livro de contos do Alberto Mussa (escritor carioca que é uma mistura do nosso melhor amigo da vida inteira com Jorge Luis Borges) e o Nintendo portátil, o volume das “Memórias Inventadas – As Infâncias de Manoel de Barros”. Há umas semanas tinha salpicado um verso desse livro para uma revista, que me pediu cinco frases de livros que me marcaram na vida. Por frase entendi também verso. Acho que basicamente a diferença entre os dois é que, no caso do verso, você não precisa ser egoísta de ocupar a linha inteira, deixando um espaço para o leitor preencher, mesmo que seja com a cuca.

E foi com o embalo dessa leitura que a cidade me recebeu: com lacunas e incompletudes que, numa paradoxal flânerie às pressas, um vagar corrido, fui escrevendo com o supetão de quem precisará voltar lá em não muito tempo. Disseram-me, e logo confirmei, que os sul-mato-grossenses são apaixonados por Manoel de Barros.

Sul-mato-grossense: esses hifens fazem a palavra parecer um trem. Existe por lá o Trem do Pantanal, que antigamente fazia o trajeto Bauru até Corumbá, mas foi desativado. Hoje faz apenas o trecho de Campo Grande até Miranda, mas hoje pouca gente procura por ser um passeio lento demais, e preferem pegar logo a estrada, mais rápida. E foi nela em que um oceano composto por centenas de bois brancos surgiu, desacelerando o trajeto, ruminando o tempo. Boitempo, como o do Drummond.

Manoel de Barros, que criou gado e devia saber disso, nasceu em Cuiabá, mas se mudou cedo para Corumbá e viveu boa parte da vida em Campo Grande. Imagino que os dois estados do Mato Grosso, o com Sul e o sem Sul, devam requerer a paternidade do poeta pantaneiro. Mas de tanto falar da terra e das miudezas, Manoel de Barros transcende qualquer chão, universal feito a cócega e a chuva.

Em dezembro o poeta faria 100 anos. Provavelmente lá as pautas dos jornais vão se voltar para o assunto e muita gente vai ler, mesmo que só pela internet, alguns poemas do Manoel. Não sei como estaremos lá no fim do ano: as previsões econômicas não são boas e nas redes sociais há um tempo as pessoas estão iradas e cheias de certezas sobre as coisas e o mundo. Sorte que economia, apesar da rima, é o oposto da poesia, e que a tecnologia ainda não conseguiu parar as rodas do tempo ou trazer imediatamente, para a vida real, a violência de um post.

Em Corumbá, zapeando a televisão no hotel, assistia aos depoimentos dos senadores. Tratava-se, provavelmente, do fato mais importante que acontecia no país naquele dia, naquela semana, neste mês. Mas para mim – e digo isso até com a não-saudade de quando trabalhei no governo e descobri que tudo lá é um grande teatro – o fato mais relevante desses dias foi conversar com uma turma de garotos sobre criação literária na beira do rio Paraguai, na fronteira com a Bolívia. Tratava-se, ali sim, de discussão séria sobre como reinventar o mundo por meio das palavras e das ideias.

Tecnicamente, o Manoel de Barros utilizava recursos simples e profundos. Entre a humanização das coisas e a coisificação do homem, lembrava da importância daquilo que, ao que parece, a humanidade está deixando para trás. Então em dezembro, talvez, a gente se lembre um pouco mais das inutilezas do que nos cerca, como um antídoto para dias tão prosaicos.

Por alguns instantes, pelo menos, seremos todos tão livres e importantes quanto o menino que carrega água na peneira.

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Muito além das french fries

(publicado no blog da editora Record)

Nos últimos dias, participei de uma sequência de programações literárias na Cidade Luz, dentro do Printemps Littéraire Brésilien, promovido pela Sorbonne. Depois de dez anos da publicação do meu primeiro livro solo (“A musa diluída”, pela Record), e outros 10 títulos lançados, fiquei bastante feliz por ter meu trabalho reconhecido em outras terras, graças a Leonardo Tonus, coordenador do Departamento de Estudos Losófonos da universidade, professor que acompanha de longe, e com olhar de águia, o que vem acontecendo na cena literária brasileira contemporânea.

(Continue lendo aqui)

 

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Retratos VGA de uns amigos Full HD – parte 4

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(crônica publicada no site Vida Breve)

Cassio Loredano – considerado por muitos como o maior caricaturista brasileiro em atividade, consta que até quando está inativo o Loredano é genial. Porque, quando não desenha, está olhando, e isso basta. De olhar meio enviesado, Loredano parece estar sempre atrás dos pontos convergentes das coisas, onde cada objeto do cenário pode saltar ou dar um esbarrão em si mesmo, e taí o motivo do seu clique. Carioca de nascença e perspectiva, seu traço cruzou o mundo e, depois de muitas idas e vindas, hoje é um dos que mais entendem a urbanidade do Rio, que sempre foi feita a lápis e sem borracha. E assim ele dá sentido ao garrancho disso tudo. Da mesma linhagem que J. Carlos, Henfil, Nássara e Millôr, o Loredano entende do riscado assume todo o risco que corre, porque no fundo ele desenha o humor presente na curva dos nossos gestos.

Tatiana Salem Levy – Dotada de um talento de berço, Tatiana logo compreendeu que precisava alimentá-lo com sustância para o resto da vida. E assim foi. Estudou, praticou e, logo no primeiro livro, mostrou a que veio, porque sabe que a vida, tal como é, não é suficiente. É dona de uma prosa segura, mas que logo depois de umas páginas, deixa o leitor bambo e capturado por tramas e texturas urdidas com firmeza. Filha de judeus turcos, nascida durante a ditadura, a Tatiana sacou que a geração X virou um amontoado de lacunas, e tratou logo de preenchê-las com aquilo que melhor define a história: ficção. Ela sabe que estamos sempre querendo voltar para casa. E se ela não existe ou foi demolida, mãos à obra.

Júlia Lima – a Júlia Lima tem um traço fofo, adjetivo que hoje serve para designar todas as virtudes que misturam leveza e desarme numa era de dureza e armações. Também conhecida como “a dona da bolsinha”, cativou um sem-número de admiradores pela rede, curiosos com o que sua autocaricatura carrega. E quem chega mais perto, descobre: ali dentro estamos todos nós, esperando para ser recriados pelo olhar sensível dessa moça. De ilustração para livros infantis a redesenhos de marcas, a Júlia consegue transformar qualquer realidade numa versão pocket, filtrada para deixar no papel apenas o que existe de melhor.

Mariel Reis – o talento do Mariel para as palavras furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. Porque tem coisas rotuladas que a sociedade diz, ecoa e tal, mas para elas vale deixar entrar num ouvido e sair pelo outro, sem nem quicar na cuca. Oriundo da Pavuna, subúrbio carioca, o Mariel contraria qualquer tese sociológica de boteco, porque conquistou seu espaço sem pedir cota ou licença: deu a cara e a palavra a tapa. Sem quaquaragem, se revela logo o leitor sofisticado e múltiplo que é: solta um Kafka, dois prousts, um dickens, dois gracilianos e embala pra viagem aqueles três eças ali do balcão. Afiado em narrar, vem afinando cada vez mais o silêncio precioso de quem o lê.

Sergio Leo – jornalista que escreve literatura, sabe a diferença entre o olhar e o fazer. Mas soma as duas habilidades no que têm de melhor, e então parece que o Sergio Leo não para nunca. Ágil e articulado, sabe das notícias e do que está por trás delas, é especialista em relações internacionais. E ensina: fazer relações públicas não é fazer públicas as relações. Com um olho no mundo e outro aqui (tem a percepção meio Cerveró, com a diferença que ambos enxergam pacas), o Sergio Leo também acompanha a bolsa e os bolsos: em livro sobre Eike Batista, prevê que o milionário de araque deve terminar a vida, suando as mangas, numa barraquinha de x-tudo.

Ana Paula Maia – cruel sem cerimônia, a Ana Paula escreve uma cena permeada de assassinato ou escatologia com pinceladas pop, e o leitor passeia por ali meio absorto, como se tocasse um Beethoven ao fundo. Surgiu na internet, explorou as virtualidades mas, como os mais safos da geração, não abandona a tecnologia infalível do livro impresso. A Ana é uma precursora da literatura pulp no Brasil, mas não me arrisco a definir o que seja pulp, embora, quando dizemos pulp, todo mundo saiba exatamente do que se trata. Violenta e tarantina no texto, é dulcíssima no trato, contrariando a expectativa de quem a conhece – felizmente, porque pior seria o contrário.

Eliza Morenno & João Fagerlander – isolados são únicos, mas quando somados se multiplicam. O casal mais poético da literatura contemporânea está por aí, em escolas e eventos literários, entre declamações de clássicos e dramatização de contemporâneos. Quem os conheceu separados sabe que já aprontavam, e a mistura fez com que se tornassem virais e contagiantes. Daí o Poesia Viral que formaram. Quem os vê falando poesia nota logo uma diferença: não nasceram nos karaokês poéticos que versejam por aí, mas cultivaram suas vozes lentamente e com cuidado, porque poesia se decora (no sentido de guardar no coração) é de dentro para fora. (Rimou.) E por isso o mundo os espera, sequioso de poesia que está.

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Assunto crônica

Retratos VGA de uns amigos Full HD – parte 3

Tiago_Silva_VB_14_julho_15

 

(crônica publicada no site Vida Breve)

Angela Dutra de Menezes – em termos de palavrarias, ela é toda trabalhada em redações de jornais e revistas ao longo de décadas. Angela escreve sem gueriguéri, seja na provocação do riso, seja na investida lírica na sua prosa, quando não os dois ao mesmo tempo. Escreveu romance sobre a suposta cura da chatice e da feiura, que desmantelaria toda a indústria da aparência que move o mundo – e os fundos. Ela sabe que, como disse o outro, entre o riso e o choro só existe o nariz. Então lá vai a Angela, cruzando o oceano rumo ao portuga que nos pariu, para dizer bem alto aos lusitanos, sem cerimônia: o Tejo, cara pálida, não é mais belo que o rio da minha aldeia.

Raphael Montes – desde cedo o Raphael aprendeu a correr atrás do sucesso literário. Hoje, ambos frequentam os mesmos lugares e se cumprimentam como velhos conhecidos. Sádico na medida, prodigioso nas tramoias, escreve como quem se diverte e o contrário também, porque compreendeu logo cedo a máxima da sobrevivência: nada em excesso, inclusive a moderação. Certa vez nos esbarramos na Rio Branco e lá estava o Montes, todo sutil, observando a turba, à caça de um perfil que inspirasse uma próxima vítima das suas histórias. Porque ele escreve livros policiais assim, dulcíssimo e semitímido, sem levantar a menor suspeita de ser um gênio do crime.

Suzana Vargas – poeta e ativista na formação de leitores e autores, Suzana sabe que o nó está na falta de caminhos. Para mostrar que são possíveis, ela mesma é um trem, e coordena uma estação por onde todo bom leitor deveria passar. Sem malabarismos e números equestres de quem está só atrás de patrocínio e matrocínio, fala devagar, didática e criteriosa, que o importante é ler e escrever bem, o resto vem depois. Ciente de que não é preciso inventar a roda, mas criar trilhos para elas girarem, Suzana vai promover uma grande oficina literária e mecânica para tentar consertar o país, letra por letra. Demanda há.

André Sant’Anna – e viva os maluco! O André sabe que dirigentes fazem na vida pública o mesmo que na privada. Observa, entre a indignação e a ironia, todos os tropeços da nação. Filho de um grande escritor, não se intimida com a sombra do pai e criou ele mesmo sua voz. E taí, para quem quiser ouvir. Entre um livro e outro, o André atua na publicidade, vez por outra atendendo campanhas políticas. E lá colhe material de sobra para seus escritos, tanto que os esboços saem pelo ladrão, por assim dizer. Bebe coca zero logo de manhã e assim vai ao longo do dia, numa dieta que só seu corpo, cada vez mais esguio e saudável, consegue entender.

Flávia Savary – se existisse uma menina maluquinha, seria a Flávia Savary. Moleca desde sempre, brinca com as palavras como quem tem todo o tempo do mundo para isso.  E ela tem. Por isso é que já recebeu mais de 80 prêmios literários mundo afora, e parece que nem chegou na metade ainda. Seja infantil, teatro, livros para adultos, a Flávia vai em prosa e verso como uma metralhadora giratória em cima do leitor, que pede, com todo o prazer, para ser alvejado. E ainda desenha. Pau pra toda obra, essa mulher é um tipo de ser humano que está em vias de extinção: o artista completo. Por definição, é aquele que não para de se aprimorar, ciente da própria incompletude.

Rafael Gallo – De Bauru, Gallo deixou todos chocados com sua escrita. Premiado, foi ovacionado com o primeiro livro e saiu para cantar de galo (também é músico) em outras freguesias, que são o mundo todo. Sem querer estar na crista, vai construindo a duras penas a própria trajetória, porque o talento não eclode da noite para o dia e é resultado de um trabalho constante. Para o Gallo, escrever é pinto, basta uma olhada na sua literatura, trabalhada ela mesma para traduzir enredos complexos em tramas que, para o leitor, fiquem às claras. Gentleman, sabe lidar bem com o texto e com as pessoas. Em suma, um galante.

Felipe Pena – (sem trocadilhos com o item anterior; não foi intencional, pelo menos conscientemente) o Felipe joga nas 11, está no banco e ainda é o técnico de si mesmo. Escritor, jornalista, roteirista, professor e comentarista de culturas, o Pena está em todas, e ainda há espaço na agenda dele. Crítico e afiado, vai no ponto e fala, com toda a educação e polidez que um doutorado em Clarice Lispector lhe deu: não é que o rei esteja nu, estamos todos. E nessa onda é que o Felipe atinge o âmago, sem nunca ser amargo, como ocorre com tantos na área. Mas com toda essa bagagem, bastam três frases de conversa para se constatar que estamos falando com um sujeito movido pelo motor da curiosidade. E assim, sem velar, ele revela.

 

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(crônica publicada no site Vida Breve)

Marcos Peres – de Maringá para o mundo, esse cara chegou para elucidar quando confunde e confundir quando se explana. Ciente de que a realidade não passa de um jogo e espelhos côncavos e convexos, faz só reflexão: juntou Borges e Hitler, recebendo logo a admiração de neonazistas que não entenderam nada e o ódio de moralistas semialfabetizados. Atribulado funcionário público e jogador de futebol, parece que sempre acabou de acordar, disfarce perfeito para quem está o tempo todo colhendo ideias e as bifurcando no jardim da cuca. Recebeu um brasão da prefeitura pelos serviços prestados à cultura da cidade, motivo de orgulho da família e de sucessivas trollagens de amigos, num tipo de inveja ariana.

Celina Portocarrero – a Celina é o próprio charme que a traduz. Essa postura régia e britânica é resultado também de muito trabalho vertendo clássicos para a nossa última flor do Lácio, ofício no qual maneja com perfeição cada frase e sentido. Artista do vernáculo, Celina sabe que, pra boa morfologia, meia palavra basta. E por isso vai logo no que interessa: reunir pessoas ao seu redor que comunguem da mesma necessidade de poesia. Ela mesma, vaticinada que só, consegue a rara proeza de fazer um poema de amor sem cafonice e falar da mulher sem virulência, tudo num mesmo verso.

Fred Girauta – quando o Fred nasceu, um anjo torto, desses que pintam o sete, disse: “Vai, cara, ser guache na vida.” Poeta temporão, não tem pressa para as urgências da molecada, e por isso lançou o primeiro livro só depois dos cinquenta. Mas gostou do resultado e já tem outra obra engatilhada para 2036. Quem viver, lerá. Praticante de pingue-pongue e letrista, consegue ser concreto e abstrato ao mesmo tempo, mesmo porque, no fundo, sabe que não existe tanta diferença. Fredão é distraído e todo odara, toca os dias na maciota, sempre em busca do ócio perdido.

Simone Campos – a Simone foi precoce, e já era 32 bits quando o mundo tentava entender o Lotus 1 2 3. Relevada aos 17 anos, ainda com filmes de 36 poses, antecipou o protagonismo dos geeks quando eles eram chamados nerds e CDFs cheios de espinhas e outros termos pejorativos. Hoje é musa geek, faz fidedignos cosplay de personagem de games e escreveu um romance sobre a vontade de fugir disso tudo. Simone sabe que a vida é um jogo, e por isso mesmo é que evita a todo tempo ser gamificada pelo sistema. Pesquisadora, ela mesma é quem dá as cartas e criou seu próprio livro jogo.

Marcelo Moutinho – quando o Marcelo cruzou de Madureira para a Barra da Tijuca não havia ainda a Linha Amarela para facilitar a vida dos suburbanos a fim de uma praia. Por isso, hoje na Zona Sul, sabe que o coração caiu do caminhão da mudança e permaneceu lá, no calçadão, perto da quadra do Império Serrano. Daí que passou a olhar o Rio de Janeiro como esse terreno de conflitos: estar quase nunca é ser, é que se lê nas entrelinhas do trem de suas crônicas e dos contos. O Marcelo escreve da Central a Santa Cruz, mas não nega o ramal de Japeri, porque mais importante que retratar a paisagem mutante lá de fora é observar com apuro os gestos dos passageiros. E se descobrir um deles.

Adriana Lisboa – prosadora de mão cheia, parece que a Adriana sempre deixa a outra vazia e entreaberta. Porque capta com minúcias aqueles silêncios que todo mundo deixa passar. Vegana convicta, aceita e respeita o próximo, mas convém não convidá-la para aniversário no Outback. Vive nos Estados Unidos, de onde vê o Brasil que existe em cada lugar. No bom sentido da palavra, sempre. Cuidadosa e cirurgiã do texto, a Adriana contraria a célebre assertiva do Conde de Buffon, segundo o qual “o estilo é o homem”. E nessa é que respeita o leitor, sem objetivo que não a de contar bem uma boa história. Ao vencer o Prêmio José Saramago, deixou para trás promessas há décadas não cumpridas pela nossa literatura: nunca o Brasil esteve tão perto do Nobel.

Marcelino Freire – esse é o cabra. Diz-se que existem pelo menos cinco Marcelinos atuando agora, simultaneamente, em eventos literários de norte a sul do país. Membro adamantinum do programa de milhagem, quando não existe uma feira que o convide, é porque ela ainda não existe. E vale cada oxente. Generoso com o próximo, já abriu tantas portas para escritores e leitores que pode entrar diretamente em qualquer casa para tomar um café literário. Dá oficinas, palestras e escreve seus próprios livros nos salões de embarque. Saiu de Sertânia, cresceu em Recife e se mudou para São Paulo, capital do capital, onde começou a publicar e agitar a galera. Tendo sido aluno do mestre Yoda Raimundo Carrero, logo matou o pai. De orgulho.

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