Category Archives: crônica

Clássicos expressos para executivos

(crônica publicada no site Vida Breve)

DOM CASMURRO

O pessoal me chama de Casmurro porque sou cismado. Mas vê só: Escobar se dizia meu amigo, estudamos juntos e tal. Ele sabia que eu estava com a Capitu mas acho que rolou um lance. Como ele morreu, fiquei sem graça de perguntar pra ela, que ficava sempre me olhando esquisito e depois acabou morrendo também. Nosso filho era a cara do meu antigo camarada, só que bateu as botas (todo mundo à minha volta morre, caçamba!) e achei melhor deixar pra lá. Ou não? Ah, já não sei de mais nada.

A METAMORFOSE

Após uma noite onanírica de desejos intranquilos e polutos, Gregor Samsa descobriu-se transformado num tremendo inseto. Preferiu não ir trabalhar na repartição, porque se era para enrolar ele seria então uma barata voadora e ficaria em casa mesmo. Contrariando as expectativas de vida após uma guerra nuclear, o antenoso ficou no quarto e morreria por lá mesmo, antes que o pai chegasse com uma havaiana de pau que o fez sair pela janela e se mudar para A paixão segundo G.H., mas isso já é outra história.

GRANDE SERTÃO: VEREDAS

Nonada. O senhor, que é de respeito e prumo, sabe que é no desvão dos entretudos se alojam as maculagens. Não sou de plantar fé no Cabrunco, no Insidioso, no Inominado; ele é que me impõe a trilha das desgraceiras. Como da vez em que deparei com Diadorim, guerreiroso e façanhudo. Era todo não-se, e eu no-que-a quantas segue o fio da peixeira?, eu me inqueria. E então somei: de rependendo, temia saltar do meio daquele buritizal uma presença avolumada. Poisque Diadorim, afinal, era nada de sertão – era sertinha.

A HORA DA ESTRELA

Macabéa nasceu já grávida de si mesma, e assim permaneceu por toda a vida. Namorou Olimpio Jesus, nem deus nem crucificado, e por isso queria mais. A mudança de Alagoas para o Rio deixou-a cada vez mais eclipsada. Trabalhou de datilógrafa, mas os dedos procuravam sempre o entrelugar das teclas invisíveis: as palavras lhes eram sempre desditas, intracaladas. Ao atravessar a rua, foi lambida por um Mercedes amarelo, e junto com a chuva que caía Macabéa aportou na terceira margem, líquida também ela. E pá-pum.

VIDAS SECAS

Fabiano e a família seguiam sobre a terra dura e árida, em busca de sustento mínimo. Foi preso, apanhou e um ano depois reencontrou o soldado amarelo. Hem, vingar-se assim de um outro humano? Deixou-o ir, na paz. A cachorra Baleia morreu sonhando com preás gordas, enormes, no que em seguida as alpercatas daquela gente cruzariam a catinga rumo à cidade grande, onde iniciariam uma dieta revolucionária à base de penúria.

LAVOURA ARCAICA

É por esse mesmo devaneio, essa chaga diária que nos mutila, o amor putrefacto das nossas intimidades que eu retorno a casa, porque agora nos reunimos na chamada agonia branda da nossa mesa, pai. Aquela árvore morta continuava a crescer, e você sabia decerto porque a regava com sua exatidão, com a firmeza do método. E então a ternura medrou definhada, com fúria secreta e pestilenta, até que num clarão irrompeu uma chispa de lucidez do corpo branco de Ana, por onde foi possível sobreviver docemente ante a nossa ruína. E tome nabo.

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Assunto crônica

eras aros e eu era eros

Publiquei semana passada esta crônica no site Vida breve.

Três pedaços de espelhos dos longínquos anos 00

1 – Apresuntei o terceiro cabra só nessa semana. Se a chapa esquenta na comunidade, normal eis que nos tamos. Sou rei aqui, mas sou família: traço a mãe tranço a filha. E da precaridade arrente vamo nos atalhos. Só tem atalho na comunidade, por onde escorre a farinha nossa de todo dia. O mundo dá muita volta: agora nóis é que vive do branco. É até legal ouvir o fragmentário toc toc pelas cercanias. Tomba um dois três, logo mais é minha vez? Meu cumpadi: se não for mano logo logo aponto o cano. Soltei pipa, andei de rolimã, mas nunca me contentei em não poder jogar bola de gude na comunidade, que rolavam todas ladeira abaixo. Peguei doce todo ano, hoje eu é que mando bala. Vou pro baile, é só o que arrente tem, pulo nas tchutchucas tudos meu neném. Mas não gosto das letras das músicas, falta poesia. Sou meio poeta. Foi a professora que falou, mas depois pediu demissão porque a galera não cooperava. Vou te tocar uma real: vai chegar o dia em que o asfalto vai virar morro e o morro vai virar asfalto. A propósito, mão pro alto… Ih, tenho que ir embora que a minha mãe tá me chamando; na base da porrada ela é a chefe do meu bando.

2 – Agora veja você no que deu pintar sobre o meu quarto aquelas flores imaginadas por não sei bem quem. Talvez eu, alheio à própria capacidade de reciclar os sóis que adentravam pelas janelas mais que abertas, não dispusesse de tamanho regozijo como aquele oferecido por ti. Certa vez, colérico, mais-que-perfeito para cometer aquilo que você jamais saberia, possivelmente tenha dado o tiro de misericórdia nas palavras e tenha me encerrado nos porões do peito apenas te dizendo, de soslaio, como um vulcão adormecido para quem assiste mas com as vísceras inflamadas: “Me dá aquele futuro que prometeste, seu babaquara”. No que então você, sem a devida parcimônia mas ainda assim cercado de suficiente austeridade, tenha apenas me oferecido algum dinheiro para meia hora de lan house, para onde fui incontinenti e lá fiquei — provavelmente ainda estou lá —, sob os auspícios da alteridade, procurando a compaixão necessária antes de matar alguém com minha metralhadora de brinquedo tão prematuramente viril.

3 – entretudo, te sexo sem mais no que. eras garanhosa, toda de repente. e fui te lendo, ao léu, te lambo lembrando. toda não-se, tu. eu te falo, não me falhes. na pegada forte, olhar permeado de dislexias: piscava todas. fui murmuroso, te fiz dormir fetal com os acalantos, a base dos lendários contos de foda. ah, florálias frondosas, meus ais. revirávamos rasgantes, fluviais, sob o jugo extático das meias-luzes, tu-lasciva mexendo e remexendo no meu queijo. papa-fina, te papava e apalpava nas pupunhas. eras aros e eu era eros. queimas como quem com calma come a cama a caminho de camus. e então eu te ligava o meu atari só para brincar de come-come.

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AI DE TI, BARRA DA TIJUCA!

No final da década de 50 fez muito sucesso uma crônica do mestre Rubem Braga, intitulada “Ai de ti, Copacabana!”, na qual o bairro teria um fim apocalíptico. A Princesinha do Mar não foi destruída, mas sua decadência hoje evidente confere ao texto um tom semiprofético. Como dizem que a Barra da Tijuca equivale à Copacabana dos anos dourados — na verdade, nem de longe — fica aqui registrada também uma crônica equivalente, guardadas as devidas proporções (tanto dos bairros quanto dos cronistas).

1. Ai de ti, Barra da Tijuca, pois tua orla em forma de sorriso parece uma boca chorosa quando vista do oceano.

2. Ai de ti, Barra da Tijuca, porque não tens o glamour daquela que queres imitar, nem a grandiosidade original dos seus habitantes.

3. Ai de ti, Barra da Tijuca, porque tua praia revoltosa irá consumir as ruas, e as ondas que tanto divertem os surfistas serão como dentes impetuosos.

4. E tudo quanto foi aterrado tornará a ser domínio de Iemanjá, pois o mar vai ceder seu corpo à lagoa de Marapendi, e ambos se abraçarão para reconquistar o espaço que lhes pertence.

5. E os teus emergentes virão à tona, estáticos, tal como as dejeções dos teus canais de esgotos irregulares.

6. Grandes são teus shoppings, mas cartão de crédito algum pagará a isenção das águas, que os tomarão totalmente despreocupadas com as aparências.

7. Ai daqueles que, bêbados, cruzam as Américas e a Sernambetiba nos seus carros importados, porque pensarão ser delírio quando virem as pistas alagarem-se, e nesse momento de nada valerão os motores possantes.

8. E os pampos nadarão nas casas dos condomínios, sem terem de se identificar na portaria sob os holofotes dos porteiros engravatados.

9. E serão em vão os esforços dos empreendedores em transformar, às pressas, a Terra Encantada num parque de águas, pois essas mesmas pessoas serão levadas junto com as instalações.

10. Ai de ti, Barra da Tijuca, porque os teus altos prédios com nomes em inglês se esfacelarão; já recebeste o aviso, mas ignoraste, e por isso tais estruturas retornarão do pó ao pó, da areia à areia.

11. E após a reconquista das águas nenhum idioma se imporá ante olhos e ouvidos impressionáveis, pois na calmaria submersa reinará o silêncio, a mais universal das línguas.

12. E tua Estátua da Liberdade revelar-se-á também um monumento descartável, tendo o corpo dissolvido ao breve toque da comoção fluida.

13. Pois grande tem sido a tua vaidade, Barra da Tijuca; por isso teus poucos refugiados procurarão com humildade abrigo na Cidade de Deus e no Rio das Pedras, e estes os acolherão.

14. Malha artificialmente em academias, ri com luxúria pela noite enquanto tens tempo, bronzeia-te do Quebra-Mar à Pedra da Macumba, porque em breve conhecerás a devastação e a fúria. Curte o teu último point, Barra da Tijuca!

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Adélia me pôs para dormir

Hoje à tarde vi Adélia Prado na televisão. Depois de almoçar com a família, prostrei-me no sofá e de repente me vi zapeando, até que o dedo parou tão logo visse a mineira, acredito que a nossa mais importante escritora em atividade. Falava de coisas extremamente simples e essenciais, como o fato de a arte ser voltada para o sentimento, não para a lógica, e que a poesia existe porque nós não nos contentamos com a instância ordinária das coisas: precisamos do extraordinário.

Porém, como tivesse comido feijoada com a voracidade dominical, e os meus recursos internos se concentrassem na difícil extração digestiva daqueles nutrientes inusitados, fui adormecendo. Continue

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